O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO
Pietro Ubaldi
1951
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Procurarei esta noite expor-vos o pensamento social de Cristo, observado em vários
aspectos seus. Primeiro, em face do problema da distribuição da riqueza; segundo, em
face do problema do instituto jurídico da propriedade; terceiro, em face da concepção
política baseada na conquista e na força, observando a posição assumida por Cristo
perante Roma, centro de um império; e, quarto, finalmente, em face da administração
humana da justiça.
O pensamento de Cristo nos levará, assim, ao problema econômico, jurídico e
político, três aspectos fundamentais através dos quais desejo observar aquele
pensamento, que permanece até hoje em plena atualidade.
Comecemos pela primeira parte.
O advento da justiça social, que é a grande realização a que o século XX aspira,
já se encontra no Evangelho anunciado e preparado em sua mais substancial forma.
Principiemos pela distribuição da riqueza, que é o mais atual e apaixonante problema, o
problema prático e basilar da vida coletiva de todos os tempos. Como reequilibra Cristo
tão distanciadas desigualdades econômicas? A solução do problema da justa
distribuição, Cristo no-lo dá em forma substancial, completa e definitiva, porque
equilibrada, e não pela moderna forma de luta de classes, que não resolve, porque
desequilibrada. O método da luta não representa algo de novo e de resolutivo, mas,
significa apenas um comum e antigo método de enriquecimento por substituição. Nada
soluciona como sistema, porque se limita a colocar novas pessoas e outras classes sociais
nas idênticas posições das anteriores. Eis porque pode interessar muito às pessoas que
nele tomam parte, para usufruir vantagens pessoais, mas não interessa realmente ao
progresso social, para o qual tem importância a estrutura orgânica da sociedade e não o
que é útil ao indivíduo; é preciso renovar a organização das posições e não as
pessoas que as ocupam; importa eliminar os velhos erros e explorações e não repeti-los
para vantagem de outros.
A moderna luta de classes não é senão a velhíssima luta biológica, que procura
obter força ligitimando-se, assumindo funções de justiça. Velho mimetismo que não
resiste à face das reais forças da vida. Isso não é eqüidade. A eqüidade, nesse
caso, é um pretexto. O método usado pela prepotência e pela violência revela, no
fundo, o costumeiro abuso, fonte de habituais e infindáveis reações. E o homem,
encantado pela miragem do bem-estar, continua a crer na possibilidade do absurdo, isto é,
que a usurpação pode produzir frutos estáveis e que basta mascarar a força com as
vestes da justiça para obter resultados definitivos, que por sua natureza ela não pode
dar. E assim, mudam os homens e os erros permancem.
Uma solução estável e conclusiva não pode ser dada senão pela eqüidade, segundo
um sistema de equilíbrios e não de novas usurpações, com que, visando vantagem
pessoal, se acredita corrigir as velhas. Isso é egoísmo e não justiça. E quando não
existe verdadeira justiça, as mesmas razões que hoje nos autorizam a nos substituirmos a
outros no domínio e bem-estar, amanhã autorizarão a outros a se substituirem a nós, e
assim sucessivamente. Forma-se, então, a muito conhecida cadeia de ações e reações,
que nunca tem fim. A eqüidade não deve existir, se se deseja uma solução somente na
aparência, mas, também, em substância, não só na forma, mas também nas almas. É
necessário, em outros termos, introduzir também no mundo econômico o conceito do
equilíbrio, da ordem e da harmonia, conceito fundamental em qualquer campo de forças, e
portanto, também nesse da riqueza, que dele não é senão um caso particular. Assim como
sabemos que o ódio não se resolve senão contrapondo-lhe o amor; como a ofensa não se
dissolve senão com o perdão, e a violência com a paciência, assim também a
desigualdade e a luta só desaparecerão se lhes opusermos a verdadeira eqüidade e a
verdadeira justiça.
Cristo não diz aos pobres: revoltaivo-vos. Seu sistema é radicalmente
diferente do usado pelo mundo. A este, que não sabe perceber senão através do
claro-escuro vitória-derrota, faz compreender que Ele não enxerga no pobre um derrotado.
Assim como não diz: revoltai-vos, igualmente não diz: sofrei
passivamente. Diz, ao contrário: Ó vós, que sois vítimas da injustiça,
tolerai, tende paciência!. Por que, então? - perguntamos.
Como sempre, a filosofia de Cristo atinge sua complementação num mundo ultraterreno,
na íntima realidade das coisas, em que toda a aparência que enxergamos se completa e se
justifica. A razão - Cristo nos responde - é que a injustiça que vos oprime é toda
humana, e por isso temporária, ligada apenas a esta vida terrena; é uma pequena
injustiça secundária, que não pode violar e não viola a justiça divina, maior, que
faz do oprimido um credor. Estai, portanto, tranqüilos, embora hoje sofrais, e se isso
não vos parece justo, Deus é justo e a injustiça do momento será compensada,
reequilibrada. Na verdade, possuis um direito; vossa consciência não vos engana: ele vos
será concedido.
O sistema do universo é perfeito, lógico, equilibrado, de uma estabilidade absoluta;
porém, o homem normal, involvido, não sabe ver a tão grande distância e considera
logro essas promessas. Culpa de sua miopia.
A nova afirmação irrompe com um grito no início do Discurso da Montanha,
enunciando-se imediatamente os temas fundamentais. No seu contrapor-se, sente-se a
inversão das posições, o jogo das forças opostas, o dualismo do binômio de que
aqueles temas são os extremos e em que aquelas forças se equilibram. Eis o texto (
Lucas, 6 ):
Bem-aventurados vós, os pobres, porque o reino de Deus é vosso!
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados!
Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir!
Mas, ai de vós, ó ricos, porque já tendes a vossa satisfação!
Ai de vós, que agora estais fartos, porque sofrereis fome!
Ai de vós, que agora rides, porque estareis em tristeza e chorareis!
O problema é resolvido pelo caminho das bem-aventuranças. Isso quer dizer que o
pobre, o faminto, o sofredor não somente recebem fraternalmente compaixão, não somente
são confortados com o reconhecimento de seu direito a compensações, mas são
considerados verdadeiramente felizes, isto é, vencedores, afortunados, ao passo que quem
pelo mundo é invejado como vencedor é reconhecido um vencido, um desgraçado. Este é o
juízo de Deus, que se substitui ao juízo humano. É assim que Deus julga.
Não vos arrogueis, portanto, ó pobres, o direito que só a Ele compete, de fazer
justiça. E justiça já vos foi feita. Se quiserdes exercê-la, por vossas mãos, pela
violência, turbareis o equilíbrio que já existe. A razão já é vossa e se assim
procedesseis a perderíeis, precipitando-vos da altitude de vencedores na miséria dos
vencidos; desceríeis da harmonia dos planos divinos, engolfando-vos no marasmo das baixas
competições humanas. Já possuis razão perante Deus. Bem-aventurados sois vós. Que
quereis mais? Se não esperardes a justiça de Deus, mas, apenas a de vossa violência e
rebelião, então passareis da situação de credores à de devedores.
Não tenteis legitimar o vosso furto, dizendo que a propriedade já era um furto. E a
vossa propriedade, agora, com tais sistemas, que seria então? Não percebeis que
justamente o vosso furto atual legitima o furto passado e que estareis, assim, no mesmo
plano e que copiareis o que acusais? Por que somente o vosso furto deveria ser justo e por
que o outro é injusto? E vós, improvisados executores da justiça, aplicá-la-eis? Não.
A filosofia do interesse carece de lógica e se com ela quiserdes passar por justos,
estareis mentindo. Não, não é lícito jamais roubar, nem mesmo aos ladrões, como é
cômodo admitir. Se assim procederdes, não sereis executores da justiça, mas, também
ladrões, e devereis pagar.
Existe uma desgraça muito maior do que a pobreza: é a culpa. Adquirí mérito, em
primeiro lugar, porquanto nada podereis possuir com segurança e alegria se não for
merecido.
Assim iluminados e confortados os pobres, depois de os haver elevado sobre um pedestal
de grandeza contra os juízos humanos e de os haver exortado a não perder tão preciosa
posição de vantagem, Cristo se dirige aos ricos, aos afortunados e, contravertendo a seu
respeito o discurso, mostra-lhes sua miséria, não lhes dá oportunidade de fuga nem
trégua, indicando-lhes os graves deveres inerentes à sua posição e fazendo-os temer as
conseqüências do seu não-cumprimento.
Assim, lógica e naturalmente, sem novos excessos e desordens, é fundamentalmente
reequilibrado o mundo econômico, confiando-se a solução do problema não a sistemas
sociais exteriores e coativos, porém, ao simples, real e espontâneo funcionamento das
íntimas forças da vida. E, de modo lógico, a reordenação começa pelo indivíduo e
pela sua convicção e não pela coletividade e por imposição; começa pelo dar, que é
generosa oferta, ao invés de tomar, que é furto e violência. Somente o dar, livre e
convictamente, reequilibra e soluciona; nunca o usurpar; somente havendo antes mudança de
diretivas psicológicas do indivíduo, pode atingir-se uma estável mudança coletiva. Os
sistemas do mundo moderno são muito diferentes e, se correspondem a uma necessidade de
justiça e exprimem a tendência da evolução social na atual fase, estão bem longe de
possuir os requisitos necessários para poder instaurar, seriamente, a justiça social.
Partindo da injustiça da violência não se pode chegar à justiça, mas, só a uma nova
injustiça. Existe, por isso, uma outra economia política que não é a do do ut
des das trocas do homo economicus e que não mais é baseada no
princípio hedonístico, porém, nos equilíbrios das forças em ação no funcionamento
da vida. É a economia do Evangelho. Sendo sua base dilatada de uma simples relação de
egoísmos humanos a uma relação, muito mais vasta, de impulsos biológicos, atingem-se,
em profundidade, vastidão e estabilidade, resultados imensamentes maiores.
Eis-nos na segunda parte, agora.
Observemos o pensamento de Cristo em face da propriedade.
Ele não encara e resolve problemas sociais isoladamente, como geralmente o fazemos
nós, mas, enquadra-os em soluções mais vastas e profundas e, assim, completas. O
preceito - ama a teu próximo como a ti mesmo implicitamente já contém e
resolve todos os problemas sociais. Esse enquadramento, se limita a amplitude de direitos
da jurisprudência romana, coordena-os no plano social, refreia o individualismo em favor
do coletivismo, seguindo uma tendência que é precisamente a dos tempos modernos. Existe
no Evangelho, já estabelecido, um princípio que se manifestará depois, com um lento
movimento que porá cerco ao arbítrio, a liberdade descontrolada, ao abuso, movimento
que, iniciado com Cristo, continuou e continuará até seu completo êxito.
Assim, os absolutismos do poder público ou da propriedade privada são substituidos
por formas mais moderadas e equilibradas. O jus utendi et abutendi dos
pagãos, egoisticamente ilimitado, racionalmente sofre sempre maiores restrições pelo
reconhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista moderna na concepção
orgânica do Estado. O Evangelho, contudo, numa antecipação de dois milênios, já havia
avançado muito mais, fazendo também pesar, como limitação, sobre a propriedade, por
motivos de utilidade pública, a pobreza do próximo, de que não é lícito
desinteressar-se. O conceito de utilidade pública é assim desenvolvido até abranger
não só os interesses do Estado e da coletividade, mas, também os do indivíduo
deserdado; chega, desse modo, a conquistar um conteúdo biológico protetório, surge como
função conservadora da vida, torna-se expressão de leis e forças universais. Que
sentido e alcance diferentes assume, então, o programa de igualdade econômica, isto é,
o de sustentar o fundamental direito de todos à vida!
O interesse coletivo vai, desse modo, abrindo caminho e sempre mais se engrandece, com
utilidade para todos, além do egoístico interesse individual. A propriedade privada
subsiste, mas cada vez menos como domínio arbitrário e sempre mais como disciplinada
função social, como serviço público. Surge, no entanto, nesse dilatar-se de suas bases
utilitárias na coletividade, uma nova garantia de solidez, toda sua, que anteriormente,
nas alternativas de abusos e reações, não poderia possuir. Quem jamais pensará em
atacar uma riqueza ou uma propriedade que traga vantagem para todos? O peso dessas
limitações é compensado, em face dos equilíbrios da vida, pela estabilidade e
tranqüilidade. O não esquecer o próximo transforma-se para o rico numa força
protetora; o sacrifício aparente é recompensado por uma nova garantia de felicidade. A
cessão à utilidade coletiva se reduz a uma vantagem que recai também sobre o
indivíduo. O pensamento evangélico supera as incompletas reformas modernas, fazendo do
rico não mais tanto um proprietário para si quanto um administrador para os outros. E a
tão radicais soluções o Evangelho chega, não através de organizados e coativos
sistemas de distribuição, mas através do mais completo e livre individualismo. Cristo
não apela para imposições estatais, mas somente para uma pessoal, íntima e convicta
maturação e para o irresistível funcionamento das leis da vida. A palavra imposição
foi suprimida no Evangelho e substituida pela palavra - verdade.
A grande distância entre os dois sistemas, o evangélico e o coletivista moderno, é a
mesma que existe entre substância e forma. O primeiro usa a paz, é equilibrado e
permanece de pé; o segundo usa a guerra, não tem equilíbrio e não pode resistir. Todo
o sistema de Cristo é sem guerra e assim, solidíssimo, porque equilibrado. Nele
absolutamente não existe o princípio dissolvente da desordem e da luta, terrível força
desagregante que deve ser afastada para bem longe se se quer construir solidademente. Eis
porque tudo quanto é agressão, violência, ódio, choque, qualquer que seja seu
objetivo, é sempre considerado absolutamente negativo, destrutivo e, portanto,
anti-social. O verdadeiro inimigo que impede a solução de qualquer problema coletivo
está em nós, em nossos sistemas filhos de nossos instintos, na nossa posição de
desequilibrados, no caminho errado que seguimos para resolvê-los. As leis da vida são o
que são. Não há senão que escolher: ou segui-las, alcançando-lhes as vantagens, ou
negligenciá-las e suportar-lhes o dano.
Daí se percebe como o recurso menos apropriado para alcançar o objetivo seja a luta
de classes. Menos inconveniente é o sistema da coação estatal. O único perfeito é o
socialismo convicto e espontâneo de Cristo, que não agrava a situação contrapondo
interesses egoístas; começa pela afirmação e consciência da unidade espiritual, não
como o socialismo humano dos direitos e da luta, mas, sim, dos deveres e da paz. Não se
nega, por esse motivo, a dura necessidade dos sistemas humanos, porquanto sem uma
constrição parece que de um involvido nada se pode obter, mas, verifica-se apenas que
eles são um mau sucedâneo do qual de bem e conclusivo não se pode esperar senão em
proporção à percentagem de produto genuino que contém. A meta é sempre a justiça
social, contudo, os métodos para atingi-la são diferentes, Onde, porém, predomina a
intervenção estatal, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e utilidade, é
preciso não esquecer o individualismo cristão, que tem suas profundas raízes nas leis
da vida e que é apto para moderar, equilibrar, completar a obra de outro sistema. Na
verdade, individualismo e coletivismo são as duas extremidades do mesmo problema social e
dois caminhos para resolvê-lo, e não se podem ignorar um ao outro; são, como o homem e
a mulher, dois termos inversos e complementares e a sociedade não pode construir-se
senão com o concurso e harmônica colaboração de ambos.
De fato, não há ninguém mais coletivista do que o individualista cristão, e em
nenhum programa existe tanto coletivismo quanto no programa social de Cristo. Atinge-se,
por isso, o verdadeiro coletivismo mais depressa através dos caminhos do individualismo
que do próprio coletivismo. Ninguém discute a importância construtiva do sentido
orgânico que o Estado moderno representa, mas, aqui se afirma também que, sem a paralela
maturação interior do indivíduo, isolados, aqueles sistemas exteriores e coativos, e
por isso não equilibrados, podem reduzir-se a sufocação, mentira, reação,
instabilidade. Nada permanece se não se chega também a persuadir e educar. O indivíduo
não convicto, embora sofrendo e obedecendo, poderá evadir-se pela inviolável liberdade
do espírito. Além disso, todos os sistemas humanos baseados na coação produzem
naturalmente os efeitos reativos que vimos acima. É necessário, ao preparar-se para
construir, não só no campo moral, mas também no social e utilitário, considerar
aqueles equilíbrios de forças que o Evangelho demonstra tão bem conhecer. De outro
modo, o método humano permanecerá na retaguarda com relação ao de Cristo, e quem
pratica este último, que representa vitória sobre a força, tornar-se-á independente de
tudo que desta deriva, porquanto a estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça,
pertence a um plano superior ao humano, de força e domínio; é, por isso, mais poderoso
e na luta entre os dois vence, como sucede na luta entre o involvido e o evolvido. Eis
porque os exércitos se mostraram impotentes para defender o império romano, ao passo que
a cristandade se colocou em seu lugar, vencendo sem armas.
Entremos agora na terceira parte.
Não podemos compreender toda a revolução social inaugurada por Cristo e, em seguida,
lentamente continuada através dos séculos até a atual e decisiva hora histórica,
senão colocando a psicologia da Roma imperial em face da psicologia do programa
evangélico. O problema é atual porque o embate das forças opostas é hoje idêntico e o
mundo se encontra nas mesmas condições: as duas concepções estão nitidamente em
contraste. Observemos a estrutura da concepção social romana, para ver depois como o
cristianismo sem armas atingiu as próprias bases dos princípios que regiam toda a
estrutura do império e, justamente por significar uma fase biológica mais evolvida,
pôde facilmente superá-lo e vencê-lo. Substancialmente, o choque é entre força e
justiça, entre duas estratégias bélicas diferentes, que não combatem no mesmo plano e
com as mesmas armas e que falam duas línguas que não se compreendem. Cristo e Roma
estão frente a frente. São símbolos de dois sistemas, ainda hoje vivos e qua ainda hoje
se defrontam. O problema permanece atual. O estudo do íntimo dinamismo, acima
desenvolvido, dos dois mundos que Cristo e Roma representam, demonstrar-nos-á,
racionalmente, o significado interior desse encontro.
O império romano representava a máxima realização da força, triunfante em toda a
sua plenitude. O direito romano é, certamente, uma poderosa criação de gênio
coordenador, admirável obra de disciplina e organização, contudo, permanece no nível
de força. A violência existe na raiz do direito que, ao invés de decepá-la,
condenando-a, intervém para discipliná-la. Indubitavelmente, isso é um passo, uma
primeira tentativa necessária de domesticação e absorção, porém, o princípio, muito
distante do evangélico, é inferior, biologicamente apropriado ao tipo involuido de que
já examinamos a inferioridade. O direito romano não se rebela contra aquele princípio,
mas aceita-o e, contentando-se com elevá-lo, intervém para aprovar, reconhecer e
legalizar o fato concluido. Entretanto, mais não se poderia exigir em face da maturação
evolutiva dos tempos. O império não era, assim, senão o mais aguerrido, orgânico e
legitimado método de violência. Foi realizado, todavia, tudo o que a evolução
biológica do tipo dominante permitia. Permanecem, assim, embora em sentido relativo à
hora histórica, a indiscutível grandeza do império e a função social de suas
criações jurídicas. Sem dúvida, os romanos introduziram ordem na força, que, desse
modo, de impulso desagregante, foi constrangida a tornar-se instrumento de construção
social. Diante da indisciplinada violência do selvagem, isso foi seguramente um grande
progresso. As províncias anexadas foram, de fato, exploradas, esmagadas, condenadas a
cativeiro e a tributo, com que se alimentava o tesouro de Roma, mas foram também
incorporadas ao grande organismo, governadas, recebendo as irradiações do superior
conceito de constituição orgânica central que partia de Roma. A grandeza imperial foi
certamente um punho de ferro sobre o mundo de então, mas não existia outro meio para
civilizá-lo. Tudo era, por isso, biologicamente proporcionado, correspondendo às
necessidades dos tempos.
Não obstante, o pecado de origem, de que derivava a posição do sistema, embora
justificado e enobrecido, era para a nação romana, ante os mais evolvidos métodos
enunciados pelo Evangelho, uma culpa permanente. O fato de Roma, máxima potência
jurídica, haver sido mãe do Direito, jamais pôde impedir que nas raizes deste
existissem o espírito de domínio e a violenta conquista da guerra. A mancha é esta: que
uma propriedade filha do furto, obtida somente pela força, tivesse sido depois
considerada completa e legítima. Esse reconhecimento oficial do direito do mais forte,
essa incondicional adesão a um princípio moralmente inferior, revelam o baixo nível
espiritual daquele povo e constituem uma culpa sua. Uma culpa de egoísmo que, num mundo
mais avançado em civilização, lhe tolheria o direito de fazer-se nação mestra dos
povos. Tal a base do império romano: a força feita justiça. O que dissemos sobre o
valor da força no dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da queda daquele
império e de sua substituição pelo Cristianismo; mostra-nos que a violência gera
reações inimigas e destrutivas contra seu autor e também que, representando o
Cristianismo um princípio mais elevado, tinha ele o direito de viver no lugar do velho,
que ficou sepultado sob as ruínas a que ele próprio deu origem, após haver esgotado sua
função. Estes conceitos os romanos não poderiam entender, pois o Evangelho lhes era
superconcebível.
A Roma antiga é grande no plano humano, não além dele. Grande é seu gênio
conquistador. Para formar e dilatar sua riqueza, por sete séculos Roma faz guerra ao
mundo. Acumula, regala-se e cai, vítima de seu poder, traída pela riqueza na qual
acreditou. Erros do sistema demolidos por poucas palavras de Cristo no Discurso da
Montanha. Aqueles positivistas da antigüidade, porém, não as compreenderam e
fracassaram. Sua filosofia era uma requintada superestrutura, vã e fictícia, que não
atingia a vida: era um disputar luxuoso que não objetivava uma mudança de bases.
Fixam-se sobre o conceito: dominar. Meio: a conquista bélica. Resultado: o solo
provincial, propriedade de Roma, os tributos oferecidos por aquelas terras, devidos ao
proprietário. Os povos dominados são principalmente os vencidos, sujeitos à
contribuição, comprimidos pelas garras fiscais, curvados perante a soberania
administradora da justiça. Do restante, menos importante, se descuida; mas permanece nas
mãos do magistrado enviado de Roma, o poder judiciário supremo.
Este foi o mundo diante do qual Cristo se achou, este o sistema que ele
defrontou, percebendo-lhe exaurida a função histórica e próximo o desfazimento.
Ele compreendeu Roma, porém Roma não O compreendeu. Ninguém ou quase ninguém O
percebeu e, no entanto, Ele representava o futuro, o único futuro possível.
Cristo ergue-se diante de Roma, inaugurando um sistema fundamentalmente
diferente, que ataca o outro pela raiz e o vence, sistema de natureza diversa,
pertencente a uma nova fase biológica. Cristo coloca-se num plano mais elevado e
daí contempla as coisas; se exemplifica digno respeito a autoridade, jamais
desce ao nível de Roma. Não compete com o poder, não o considera de igual a
igual: obedece-lhe por dever, mais pelo respeito ao próprio dever, isto é, à
altitude da própria figura moral, que ao outro poder, isto é, à superioridade do
alheio domínio. É um respeito ao princípio, mais que ao homem, que vale o que na
verdade vale. Concede, por isso, ao poder tudo o que lhe diz respeito, como a
uma criança se deixam seus brinquedos, tão pouco é o valor atribuido ao que ele
é e ao que ele pede. Verdadeiramente, a posição de Cristo perante a autoridade
do mundo é a de um digno e respeitoso desprezo, porque refugado à face do céu é
o mundo e tudo o que lhe pertence. De fato, Ele recusa a terrena realeza que as
multidões lhe oferecem, sentindo-se rei de um reino muito diferente. Sua posição
perante as autoridades constituidas não poderia ser a costumeira posição humana
que, filha da força, não sabe ser senão de servil reverência ou de rebelde
tentativa de dominar para substituir: mas, foi naturalmente, por derivar de um
princípio mais elevado, de superioridade e quase de indiferença. Os grandes
valores não se encontram onde o homem supõe e os valores humanos não merecem
muita atenção. A menos que possuam um mais alto conteúdo moral de função e
missão, em si mesmos, causam antes piedade que inveja.
Assim, a posição de Cristo em face de tudo o que é valorizado como afirmação
do homem da força, é negativa, de respeitoso absentismo tão longe do mundo estão
os maiores tesouros da vida, tão diferente daquela em que se crê é a íntima
realidade das coisas, de tão maior potência e riqueza é transbordante o outro
reino que está nos céus. Eis a se tocarem o espiritual e o temporal, como dois
mundos limítrofes, mas, sem que um invada o campo do outro. O que Cristo
valoriza e de que cuida, o mundo despreza e descura; o que o mundo valoriza e de
que cuida, Cristo depreza e descura. Que pôde o império de Roma contra Ele? A
lei, filha da força, não possui outra arma senão a força; poderá constrangê-lo,
mas, Ele permanece livre no espírito. E a Pilatos, autoridade humana que o
ameaça, responde que o poder desce do Alto e não apenas do inferior, isto é,
significa coisa muito diferente do resultado duma conquista, do exercício de
domínio do vencedor, dum arbítrio ou uma vantagem: é, ao invés, uma função
social enquadrada numa hierarquia de forças e funções que vão até Deus, é um
comandar por obedecer, um dominar para servir, um impor-se à dependência de um
princípio e somente em relação a ele; é, portanto, uma missão, um dever, um
cumprimento da Lei de Deus; a quem se deve prestar contas. Todo o sistema da
força, em que Roma se firma, e com isso também compreendo o mundo moderno, é
assim tragado e naufraga, aos pés deste outro sistema, baseado em princípios
totalmente diversos. o Ressuscitado, derrubando a pedra do sepulcro, derrubou
também, até aos alicerces, o mundo que o circundava.
Entremos agora no quarto aspecto proposto, limitando o problema político ao
da humana administração da justiça.
Olhemos ainda mais de perto o encontro entre os dois princípios postos face à
face, através de seus dois representantes: Cristo e Pilatos. Homem interesseiro,
covarde e insignificante, Pilatos passa à história só por se haver encontrado
com Cristo, de quem nada compreendeu. O representante oficial do império de
Roma, o intérprete da lei, a autoridade a quem cabe o exemplo, embora tente
colocar-se formalmente em seu lugar, é interiormente vazio, e daí seu
comportamento hesitante e equívoco, que faz aparecer o vazio interior e a
insuficiência do sistema da força e da forma. É inútil o querer, na vida, assim
disfarçar e justificar-se, como se as aparências pudessem ter força de realidade
e a forma, de substância. A verdade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se
também no exterior, porquanto as ações dependem das convicções de que nascem e
por que são guiadas.
Pilatos, expoente do seu tempo e do seu mundo não tem nenhum senso interior
que o guie e a letra da lei não basta para socorrê-lo no momento do supremo
encontro. Cristo lhe fala de verdades eternas e ele pensa no imperador Tibério e
na sua própria carreira; é um verme que rasteja na terra, preso aos próprios
interesses e não suspeita o significado das palavras que ouve: sua alma é surda,
Cristo o sente e não lhe responde. Um único argumento o impressiona: que ele
seja ou não amigo de César. "Se o libertas, não és amigo de César" - gritava o
povo. Ele confunde Cristo com seus acusadores, considerando todos uma raça
inferior, pois que um só direito e uma só grandeza poderia conceber sua mente:
os do vencedor. Com sua cabeça quadrada de romano, modelo de todos os homens
práticos e positivos, ele nada compreendeu. Cristo o sonda, do alto de sua
grandeza moral, detentor de um poder e autoridade muito diferentes da autoridade
e poder oficiais do representante da lei, e se cala. À grave, porém, indiferente
e distraída pergunta, lançada sem desejo de resposta: "Que é a verdade?",
proposta por um cético indigno, opõe ele o silêncio. Cristo recusa até a defesa
própria, porque prefere abandonar-se à vontade do Pai, antes que aos argumentos
humanos, que são a arma inaceitável do sistema humano de Pilatos.
Cristo não desce a esse plano. Pilatos lhe pergunta: "Nada respondes? Vê de
quantas coisas te acusam! Mas, Jesus não quis mais responder, de modo que
Pilatos se maravilhava", - diz o Evangelho. Ele não poderia conceber os métodos
de Cristo e seus objetivos super-humanos. Para ele, a psicologia do martírio era
um absurdo. Cristo lhe respondeu somente para lhe dizer que era verdadeiramente
rei e para colocar em seu lugar e reduzir aos devidos limites a autoridade da
Terra. Pilatos lhe diz: "Não me falas? Não sabes que tenho poder para
crucificar-te ou para libertar-te?" Jesus lhe respondeu: "Nenhum poder terias
contra mim se do Alto não te fosse dado...". E assim, um outro poder cintila
atrás e mais alto que o poder humano que, de vencedor arbitrário, é reduzido a
simples instrumento nas mãos de Deus.
Poder-se-á objetar que Pilatos não era, verdadeiramente, um exemplar máximo
de magistrado romano e que, portanto, não representava toda a nação romana.
Aqui, porém, não se trata apenas do caso de um homem que, por baixeza, atraiçoe
um sistema perfeito, e sim de um sistema que põe à mostra seus pontos fracos,
pois se mostra falho ante os escopos da vida e do progresso quando é confiado a
um homem qualquer e colocado em face de problemas mais altos e também
fundamentais para a sociedade humana. Pilatos havia certamente, ninguém sabe
quantas vezes, ouvido em Roma as vazias e enfadonhas exposições de filosofastros
gregos, realizadas por escopo pecuniário, e se habituara à idéia de que é
inconclusivo discutir sobre a verdade, conceito que no seu espírito deveria ter
tomado um sentido negativo de vacuidade e mentira. Esse ceticismo, porém, que
não considerava seriamente nenhuma filosofia ou teoria, não era a forma mental
de Pilatos apenas: era a psicologia do século, de que ele não era senão um
expoente. Em Pilatos falam os tempos, já incapazes de crer em qualquer coisa,
fala o materialismo de Roma, que nele tomava forma e se fazia símbolo. E como a
Roma imperial não possuia os elementos para seriamente compreender e aceitar
Cristo, assim Pilatos não O compreendeu e não O valorizou, isto é, não foi capaz
de fazer nem mais nem menos o que o mundo sabia fazer, - um mundo de
incompetentes diante de Cristo. Em Pilatos repercutiam Roma e seu tempo. Ele era
seu filho e seu produto, era o efeito que está unido à causa, que não pode senão
exprimi-la e representá-la. Não apenas, porém, substancialmente, mas, também
oficialmente, Pilatos era, como magistrado, o representante do poder e do
pensamento de Roma, da autoridade imperial que de modo algum o desaprovou e,
assim, subscreveu seu modo de agir. Foi com ele concordante e, portanto,
co-responsável. A infâmia do Gólgota não foi, portanto, somente erro e culpa de
homem, mas erro e culpa do sistema que havia formado aquele homem e que assim o
fazia agir. O erro continuou, de fato, através dos séculos, com outros mártires,
justamente porque aquele sistema não era capaz de compreender senão sua
autodefesa; fechado no próprio egoísmo não sabia elevar-se a visões mais vastas,
de modo a abraçar a evolução do mundo.
Para que haja luta é preciso que também haja afinidade e compreensão, que
haja qualquer coisa em comum que una ou divida. Cristo e Pilatos são os
representantes de dois mundos. São estranhos um ao outro, senhores de dois
campos diferentes, e se encontram por acaso, sem que se procurem, sem se
conhecerem; expressam dois raciocínios lógicos, em relação a cada um, mas,
reciprocamente absurdos. Cristo compreende Pilatos e por isso se cala. Do outro
lado, porém, a forma não compreende a substância, a força não compreende a
justiça, mostrando-se cega, capaz apenas de ferir, e por isso fere às cegas, sem
compreender, dando de si um escandaloso espetáculo, que sutilmente demolirá,
através dos milênios, o princípio de autoridade baseado na força. O poder humano
condena e assim atrai sobre si, em virtude de um poder mais alto, a condenação
do mundo. A força, não guiada pelo espírito, cai em erro e falha; porém, a mais
alta justiça do espírito triunfará a despeito da injustiça humana. A batalha,
sintetizada naquele primeiro encontro entre Cristo e Pilatos, prolongar-se-á por
milênios, seguindo o desenvolvimento dos impulsos que representa. Se Cristo e
Judas, Cristo e o Sinédrio estão no drama, de maneira nítida, frente a frente,
como verdadeiros antagonistas no campo moral do bem e do mal, que lutam, mas, se
compreendem, ao poder civil não é concedida nem ao menos essa honra. Judas e o
Sinédrio vão diretamente ao seu objetivo; porém Pilatos é uma série de
contradições, de incertezas, de mal-entendidos. A própria inscrição que indicava
o motivo da condenação: "Jesus Nazareno, Rei dos Judeus", é um mal-entendido.
A mente de Pilatos gravitava em torno de um centro completamente diferente.
Assim, para esquivar-se, tenta transformar o caso numa burla. Para libertar-se
de Cristo, envia-O a Herodes. Declara três vezes: "Não encontro nenhuma culpa
nele", e pergunta: "Mas afinal de contas, que fez ele de mal?". Portanto, não
percebe culpa no acusado, reconhece-o inocente; e, no entanto, deixa passar uma
condenação que poderia e deveria anular. Torna-se, assim, cúmplice do Sinédrio,
que não havia instaurado um julgamento, antes, conspirava uma supressão, já
preconcebida e preordenada com deliberado propósito. Então, diz o Evangelho,
"Pilatos tomou uma bacia e lavou as mãos diante do povo, dizendo: Sou inocente
do sangue deste justo; considerai isso. E todo o povo replicou: Que o sangue
caia sobre nós e sobre nossos filhos!". Eis a figura daque que por covardia fez
a grande rejeição. A rejeição foi grande e foi covarde. Ele estava convicto da
inocência de Cristo, tanto que o chama justo. Diz: "Que mal fez ele?", porque
compreendeu que a acusação era falsa, movida pelo ódio. Sabia muito bem que os
chefes dos sacerdotes Lho haviam entregado por inveja. Repete: "Não encontro
Nele nenhum crime" e procurava libertá-Lo; e no entanto, deixa-O caminhar para a
morte. Teria podido e deveria ser juiz e executar justiça, mas, não soube nem ao
menos resistir à injustiça, da qual se fez instrumento e servo. E, contudo, a
sentia, tanto que buscou esquivar-se dela, mas, só enquanto pode fazê-lo sem
muito esforço e sem prejuizo próprio.
Pilatos experimentou quatro expedientes no seu vão esforço de subtrair-se à
responsabilidade. O primeiro foi enviá-Lo a Herodes. O segundo, a flagelação,
como simples castigo, visando depois soltar o acusado. O terceiro foi a oferta
ao povo de escolher entre a libertação de Cristo e a de Barrabás, ladrão e
assassino. O quarto expediente foi a tentativa de comover a multidão,
apresentando-lhe Cristo: "Ecce homo!". Miseráveis temporizações, vãs
escapatórias, imperdoável incerteza! O destino impunha a Pilatos tomar uma
nítida posição em tão grande momento e ele não soube fazê-lo, permanecendo entre
os pusilânimes e os irresolutos, desagradando a Deus e a seus inimigos.
Na realidade, Pilatos teve medo da multidão, cedeu a suas instâncias; sua
condenação não é um julgamento, é uma rendição. Entre tantos juizes, não existiu
um verdadeiro julgamento e Cristo foi considerado réu de morte. Naquele momento,
a justiça, através do direito humano competente, falha em sua função e se cala.
Pilatos abdica de seu poder, pactua com a multidão, procura lançar sobre ela a
responsabilidade que não teve a coragem de assumir, quando teria podido afirmar
uma inocência de que estava convicto, em lugar de deixar-se arrastar a uma
condenação. Deixa-se governar pelos judeus que, conhecendo seu lado fraco, que
era o temor servil de Roma, fazem-no tomar uma decisão, usando a mais eficaz
ameaça: "Se o libertas, não és amigo de César".
Assim faz a história o julgamento dos juizes e instaura processo contra a
autoridade que processa. Este foi o exemplo do representante do poder civil, do
procurador Pilatos, expoente da justiça humana baseada no sistema da força,
símbolo do involuido moral, expressão do espírito daqueles tempos, do homem que
cede às pressões humanas e permanece negativo em face das superiores realidades
do espírito. Ele permaneceu ainda por vários anos no seu cargo e pelo seu crime
não sofreu dano. A justiça humana, porém, foi manchada e permanece, por vinte
séculos, condenada. Esta sua posição, num acontecimento histórico de tal
importância, será um sinal que a acompanhará no tempo. A justiça humana
desonrou-se. A injustiça do Gólgota foi uma injustiça da justiça e é um
descrédito permanente para a obra dos juizes humanos. Esse caso permanece como
um símbolo de todas as condenações do justo, um exemplo clássico que inaugurou
uma tradição, quase um hábito, de erros judiciários providencialmente destinados
à glorificação de suas vítimas e a instrumento de seu triunfo. Abriu caminho,
assim, ao conceito de uma justiça superior, continuada por mártires e por
heróis, que devem pagar seu tributo à formal justiça humana, que é, no entanto,
a honesta aplicação da lei do tempo. Começou-se, assim, a observar na história a
presença desse necessário fenômeno de contínua superação das idéias e das leis,
e a compreender a função e apreciar o valor dos rebelados à velha ordem, que
lutam por uma ordem nova e mais elevada. Em face dessa inexorabilidade de
evoluir, o respeito à ordem existente caía do plano de valores absolutos ao dos
relativos. E os rebeldes a qualquer ordem, tão comuns, homens interesseiros e
facciosos, arrebataram a nobre auréola dos mártires inovadores para se
mascararem como tais e melhor se satisfazerem, assim protegidos. De tudo se
utiliza na Terra. Permanece, porém, indelével no coração humano o sinal da
iniqüidade sofrida pelo Maior Afirmador da Verdade, pelo Fundador de um Novo
Reino na Terra, promessa ainda viva e essencial após vinte séculos e única
esperança para o futuro.
Falamos de erro judiciário. Contudo, o caso de Pilatos é mais grave que
qualquer dos erros comuns, imputáveis à imperfeição humana. Ele compreendeu
perfeitamente a inocência de Cristo e, por isso, O defende, mas só até quando
isso não o prejudica. Nesse ponto, o interesse calculista acha mais conveniente
mudar de caminho. E então Pilatos, homem da lei, formalmente em seu posto, mas,
intimamente um aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu tempo, abandona
à morte sua vítima inocente. A própria defesa, limitada e apenas tentada, que
Pilatos faz da inocência de Cristo, é baseada em razões bem diversas dos motivos
por que aquela defesa deveria ter sido conduzida até o fim. Se Pilatos
compreendeu a inocência de Cristo, ele O confunde com um simples inocente e o
defende em relação ao direito e por razões deste, e não acima dele. Comporta-se,
assim, sempre, como simples materialista míope, que nada enxerga além da forma,
que não percebe a profunda realidade das coisas. Da superioridade de Cristo a
todo o seu mundo, de Sua doutrina de transformação social, de Sua missão e do
Seu pensamento, Pilatos nada compreendeu.
É lógico que não podemos dizer que Pilatos seja Roma, isto é, toda a nação
romana. Podemos, porém, afirmar que naquele momento se ergueu, pelo seu
comportamento, diante do tribunal humano, um outro tribunal; e o tribunal dos
homens foi marcado por este outro com um lindelével sinal de infâmia, e isso foi
feito pelo trabalho e com os recursos da paz e da mansidão. Trata-se, pois,
também, de um choque de sistemas, em que o da força leva a pior e permanece
condenado pelos tempos. A força, embora juridicamente disciplinada,
demonstrou-se um instrumento capaz de tornar-se, se sozinha, sem o concurso e o
guia do espírito, não um auxílio, mas um obstáculo ao progresso, não um meio de
ordem, porém, da desordem.
Naquele dia foi lançada ao mundo a advertência, que dizia: Cuidado! Aquela
concepção não basta, falta-lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem seu valor
em seu posto, mas, necessita de elevar-se. A legalidade não é suficiente, se
pode conter uma traição, se em alguns casos, ao invés de exercer um papel que
impulsione a evolução, pode transformar-se num freio que a detenha. Não é mais
suficiente ao homem uma justiça que possibilite, embora nem sempre isso
aconteça, condenar um inocente, e até um benfeitor, e libertar um criminoso.
Qualquer coisa protesta no íntimo do espírito humano, onde a Lei de Deus clama
por justiça. A consciência conhece e distingue e por isso condena um poder e uma
autoridade capazes de trabalhar em sentido contrário ao que deveriam fazê-lo,
que podem lesar ao invés de defender o bem e a vida. Pilatos não é Roma inteira,
mas, significa, sem dúvida, um sistema jurídico que revela suas insuficiências,
um estado humano involvido que demonstra sua cegueira. Quando se parte da força,
então a dura necessidade da defesa individual e social pesa sempre sobre a
função de julgar, que dela pode tornar-se até um instrumento, transformando-se
em injustiça. Somente Cristo atingiu as profundezas do problema, dizendo: "Não
julgueis". Quem está imerso na luta, como o homem, não pode ser imparcial e,
portanto, não pode julgar. Onde se encontra um juiz que não seja atingido por
conflitos? Somente em Deus o homem procura, insatisfeito de qualquer outro, quem
pode verdadeiramente julgar. Nas mãos da justiça humana, baseada na força, é
mais poderosa e preponderante a espada que a balança. A espada pesa e inclina a
balança para o lado de quem a sustenta, de quem a conquistou e para si a possui.
Não existe senão uma solução: evoluir, evoluir, evoluir, para minorar sempre
mais o duro peso da espada, que a atual involução nos impõe. Evoluir ao longo do
caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem que pertence ao passado, a
balança é a ordem que pertence ao futuro. É preciso reequilibrar as forças
desequilibradas na luta. A evolução passa da espada à balança. Do dilema não se
sai: ou melhorar-se neste sentido e atingir, por bondade e lógica, a verdadeira
justiça, superando a força e pacificando-se com o não-reagir, ou então continuar
a sofrer, sem saber até quando, as conseqüências do sistema vigente.
É este o significado daquele primeiro encontro entre a nação romana e
Cristianismo, primeiro impulso de renovação biológica. Problema que diz respeito
ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje, após dois milênios, a humanidade a
ele volta, apenas um pouco mais amadurecida, com espírito e costumes diferentes,
sem a intuição e a paixão dos mártires, mas, com atitude racional, armada de
ciência e técnica, de orgânicos planos sociais, de vastos recursos de
classificação, secundada por grandes massas mais ágeis e unificadas. O esforço é
enorme, a tentativa enérgica, o momento decisivo. Ou criar, sobre essas bases,
uma nova civilização e melhorar a vida, ou então suportar por séculos as tristes
conseqüências do atual bárbaro sistema de força. Sem dúvida, o pensamento de
Cristo está no alto, muito no alto. Mas, justamente por isso, pertence ao
futuro. A vida impõe progresso e é preciso subir. O Evangelho é um cume, um alvo
máximo. Mas, quem sobe se encaminha para um cimo. De tempestade em tempestade,
de revolução em revolução, a humanidade não pode ir para outro lugar. De guerra
em guerra não pode encontrar, no final, senão paz. O pensamento de Cristo
representa o ciclo biológico da humanidade. Dele não se pode evadir. É a meta da
vida que nos espera. É uma verdade que não envelhece, antes, com o tempo se
torna cada vez mais real e atual, porque sempre mais próxima de sua
concretização. O Evangelho é um programa. A humanidade futura será sua
realização.