A personalidade humana é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo, isto é, um
equilíbrio e um desequilíbrio. Do movimento das duas partes, uma para a outra e uma
contra a outra, nasce aquela elaboração por meio da qual se evolui. As duas partes são
amigas e rivais, atraem-se e repelem-se, aproximam-se e afastam-se, estão conjugadas para
viver juntas e, mal se enfraqueça uma, a mais forte predomina e invade o campo da outra.
As raízes do psiquismo imergem mui profundamente nos misteriosos meandros da estrutura
orgânica. E podemos dizer também que as causas e as razões da estrutura orgânica
remontam muito alto no campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até as
profundezas da célula, cuja complexa estrutura conhecemos.
A vida pulsa de um a outro
polo, da inconfundível individualidade sintética e unitária à extrema ramificação
sensória, à infinita multiplicação celular, à analítica e ambiental pulverização
fenomênica. O eu é duplo, não só no centro, senão também na periferia, aqui,
analítico, para captar e assimilar experiências, acolá, sintético, para resumi-las e
destila-las em suas qualidades. No centro, permanece idêntico a si mesmo, um eu
inconfundível; na periferia, flutuante, entre mutáveis experiências. A corrente se move
em dupla direção: o mundo interior se nutre das vibrações provenientes do mundo
exterior e este é dominado e modelado pela vontade daquele. O funcionamento celular
ressoa no funcionamento psíquico e este se reflete naquele. O eu é concebível como
centro, somente enquanto lhe é conexa a idéia complementar de periferia. Assim, a
personalidade espiritual pode aparecer como uma síntese de inteligências celulares e o
oceano dos mínimos órgãos celulares, até o átomo e seus elétrons, pode aparecer como
um veículo daquela personalidade, como corpo, veste da alma. O espírito, desde que está
no centro, está igualmente em cada ponto da periferia; é, a um tempo, o centro e a
periferia.
Observemos, pois, o problema da personalidade humana. A evolução biológica resulta
de uma dupla e inversa evolução: a material terrena e a espiritual ultraterrena e se
efetua através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e de vida
contemplativa. Quem executa o trabalho e como se divide ele? O espírito, de sinal
positivo, é como o macho, dinamizante e está à testa da evolução. Para ele convergem
as experiências da vida. Com estas, ele se elabora e, conseqüentemente, elabora também
o seu corpo, aperfeiçoa-o e desmaterializa.
O espírito evolve para planos cada vez mais
rarefeitos e, nesta ascensão, atira para trás o seu veículo material, isto é, faz para
si progressivamente corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evolutiva e a
relativas formas de vida. Compreende-se que, para poder lidar com a experimentação, tem
o espírito sempre necessidade de um corpo, qual outro extremo do binômio, não importa
que esse corpo venha a ser desmaterializado até o ponto em que pareça incorpóreo. Ele
é sempre um veículo proporcionado, como delicadeza e sensibilidade, ao grau de
evolução atingido pelo indivíduo que, por seu peso específico, se equilibra,
escolhendo um ambiente onde as provas são proporcionadas às qualidades por ele
alcançadas.
O organismo corpóreo, de ondas longas e de baixa freqüência, segue pois o espírito,
que, evoluindo, avança para o alto, isto é, aproxima-se, a um tempo morrendo e
renascendo, do extremo oposto, de ondas curtas e alta freqüência, e transforma sua
vibração na deste último tipo; ou, em outros termos, espiritualiza-se. A corrente de
vibrações que sobe da multiplicidade das experiências sensórias até convergir na
síntese do espírito, administra as forças para o trabalho; mas, ao mesmo tempo, uma
paralela corrente de descida, do espírito para o organismo, investe este último com
tipos de energia cada vez mais elaboradas, isto é, de ondas cada vez mais curtas e de
freqüência cada vez mais alta, de modo que assim, lentamente, se eleva o potencial de
toda a personalidade, de um a outro de seus extremos, inclusive em sua parte física.
Dessa oscilação de atividade, conexão e repercussão de forças, deriva a evolução.
Conquanto caiba, dentre os dois princípios, ao ativo a execução desta ( evolução ),
aí ocorre também sua contraparte, o princípio negativo, sem o qual faltaria ao primeiro
a matéria por plasmar, a substância com que construir. Reencontramos nesse caso a mesma
distribuição de trabalho que existe entre macho e fêmea. O organismo físico recolhe e
acumula, o espírito dinâmico elabora e avança. O primeiro, engordando, torna-se lento e
vegetativo, e, mal haja alcançado a satisfação dos instintos da conservação e
reprodução, sente-se farto; o segundo consome a vida vegetativa para criar mais no alto,
martela e atormenta-se na ânsia de evoluir. Tal é, pois, a dupla face da vida.
Mas o dualismo espírito-matéria não é suficiente para exaurir o problema da
personalidade. Esta contraposição entre periferia e centro, entre as correntes de
ascensão e descensão, segundo a qual se distribui, entre os termos positivo e negativo,
o trabalho da evolução, não é a única polaridade da vida. Superposta a esta, que
poderia ser representada como bipolaridade vertical, em que a matéria está
evolutivamente em baixo e o espírito no alto, poderia imaginar-se uma bipolaridade
horizontal, em que o princípio biológico positivo derivado do núcleo do gameto paterno,
ou espermatozóide, e o princípio biológico negativo, derivado do gameto materno, ou
óvulo, estão situados à esquerda e à direita daquela bipolaridade vertical. A
consciência humana é, pois, um concerto em que se reune uma orquestra de vibrações
provenientes, em feixes, destas quatro grandes vias determinadas pelos dois binômios
cruzados. Eis o de que somos constituídos, o de que somos filhos e pais. Somos
constituídos deste conjunto orgânico de forças e correntes, ou seja, de algo muito mais
complexo e extenso que a simples carne de nossos progenitores, embora ela tenha vivido
muito e em si traga escrita a sua história. A personalidade humana abrange os dois
binômios, isto é, contém em si quatro elementos que têm necessidade de fundir-se e
todavia lutam por sobrepujar-se, dois desequilíbrios de forças à procura de
equilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de sensação. Deles
derivará, segundo maior ou menor concordância, um estado de maior ou menor
aquiescência, ou de maior ou menor contraste e potência criadora e, das notas baixas às
agudas, uma gama de ressonâncias e riqueza de sentimentos, mais ou menos extensa e
profunda.
A personalidade constitui o campo de batalha destas forças, que nela se
contêm, as quais tanto podem ser sonolentas e concordantes, como impetuosas e
discordantes, de modo a fazer daquela personalidade um explosivo. Pode ela assim
aparecer-nos sob muitos aspectos, segundo as suas várias posições, que vão de um
extremo, representado por um estado de inerte pacificação, a outro extremo, que é um
estado de violento dinamismo criador, derivado de um desequilíbrio que, se não se souber
dominar, pode precipitar na loucura. O gênio foi aproximado desta, não porque os dois
extremos tenham algo de comum, como estado e resultados, de vez que nunca foi mais
profunda a diferença entre os dois termos, mas porque o desequilíbrio originário do
dinamismo criador de um está a um passo da derrocada espiritual da outra. Mas, a
superioridade do gênio está precisamente na potência de domínio e de coordenação das
próprias forças de que demonstra ser sempre senhor. Domínio e coordenação muito mais
fáceis para o normal dotado de muito mais escassos recursos. Seja, porém, como for, o
segredo da vida, considerando-se esses elementos constitutivos da personalidade, consiste
no saber encontrar o acordo.
As correntes de vibrações que percorrem nossa personalidade derivam, pois, de quatro
fontes que representam quatro mundos, quatro sínteses resultantes de um longo passado.
São elas:
- 1°) O eu espiritual ou eterno;
- 2°) O ambiente terreno;
- 3°) O elemento paterno;
- 4°) O elemento materno.
Superpondo graficamente a reta da bipolaridade vertical à reta da bipolaridade
horizontal, teremos um desenho em forma de cruz, em que os quatro termos lhe corresponde
aos quatro braços. No alto, teremos o espírito; em baixo, o ambiente-matéria; à
esquerda, o elemento paterno e, à direita, o elemento materno. Para chegar ao espírito,
as experiências de ambiente devem atravessar o organismo físico. As correntes
vibratórias vão do alto para baixo e de baixo para o alto, da esquerda para a direita e
da direita para a esquerda, e há esta luta em todas as direções. A personalidade é o
resultado dessa luta, é a síntese desses elementos; por isso, ela pode ser múltipla,
como oscilante entre os vários pólos extremos.
No plano orgânico-psíquico
( sabemos que o espírito está além do cérebro ), a luta se verifica entre a
personalidade paterna e a materna e explode na puberdade. Vence uma das duas
personalidades, que se afirma e se torna dominante e na qual prevalece um ou outro tipo
dos progenitores. Como acontece em toda convivência, o mais fraco cede onde o mais forte
conquista e chega-se assim a um acordo. A personalidade vencida não morre por isso, mas
continua a girar, vivendo em tom menor, qual força subordinada, em torno da principal,
como um planeta de luz reflexa em torno de seu sol. A natureza não a despreza, nem a
dissipa; utiliza-a, confiando-lhe, porém, funções menores e, todavia, necessárias,
como o controle representado pela oposição, pela minoria, como a tarefa de equilibrar,
freiando-o, o domínio exclusivo e o desencadeamento repentino e irrefletido da
personalidade dominante. Reflexão significa recíproco controle entre duas tendências, a
hesitação é suscitada pela disputa entre elas. Daí os contrastes de vontades, a
tragédia dos opostos impulsos da consciência. Quando vence uma ou outra das duas
forças, a remanescente retira-se, vencida, para a sombra, contentando-se com viver em
surdina, na expectativa de tomar suas represálias e assumindo, nesse ínterim, a
direção de funções menores, para surgir como diretriz geral, mal se canse e vacile a
outra.
Há vários graus de fusão entre os dois elementos. Há indivíduos, por assim dizer,
impulsivos, nos quais uma personalidade venceu tão nitidamente, de modo a dominar,
imperturbável, sem resistência, todo o campo da ação, porque a parte oposta cedeu
completamente e, portanto, já não exerce nenhum controle. Então, a decisão é fácil,
simples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e flexões. Dado que sejam
poucas as forças em campo, a solução é logo encontrada. Isso parece presteza e,
contudo, não passa de simplicidade e pobreza de meios. Outros, ao contrário, parecem
tardos e são, ao contrário, ricos e complexos. Nestes, o desequilíbrio não se
resolveu, pacificando-se na estase e permanece alimentando a contradição. Neles, as
personalidades, prepotentes ambas, concorrem contemporaneamente em cada ato, trazendo uma
riqueza tal de forças propulsoras e contrastantes, que se tornam muito mais laboriosas as
decisões. Deriva daí toda uma gradação de manifestações volitivas e de capacidades
de decisão, gradação que vai da ação imediata à indecisão, da ausência de controle
do impulsivo, a um controle tão rigoroso que paralisa a ação ( Hamlet ); vai da ação
sem orientação à orientação sem ação, ou seja, à reflexão que paralisa.
Tudo isso
depende das características dos dois elementos: paterno e materno. Quando eles são
biologicamente muito desiguais, não ocorre sua fusão, ou, se ocorre, ocorre mal. Daí
procedem todas as anormalidades que nos são descritas pela fenomenologia psiquiátrica,
as formas mentais em que predominam a dissonância e a instabilidade, aquele
desequilíbrio dinamizante, mas perigoso que, dominado e reconduzido a uma ordem superior,
pode constituir o gênio, mas que, abandonado ao contrário, a si mesmo, pode culminar na
loucura. Em geral, porém, as duas impulsões, paterna e materna, acabam por estabelecer
um acordo. Se demasiada é a diferença, dela nascerá um caráter mosaico, um compromisso
mais ou menos estável e equilibrado. Se se considerar como podem os elementos
determinantes unir-se, na reprodução, em infinitas combinações, compreender-se-á que
inexaurível riqueza de tipos a natureza pode produzir.
Assim como na realidade não
existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e equilibrado de maneira absoluta,
assim também não existe o verdadeiro falido, o patológico absoluto. Tudo na vida é
cheio de permutas e compensações. Quem não vence hoje, poderá vencer amanhã. O novo,
o original, a personalidade eminente são o que primeiro pode nascer da tais
desequilíbrios, desde que dominados coordenados e disciplinados. Tais desequilíbrios se
tornam então uma qualidade preciosa, a única que pode trazer uma contribuição inédita
ao pensamento e ao progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, sabe
errar e emendar-se, compensa-nos sempre de qualquer modo com o que nos falta, deixa-nos
cair para ensinar-nos e erguer-nos, expõe-nos aos assaltos para guiar-nos à vitória, à
aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento de nosso patrimônio de capacidade e de
defesas.
Todas as impressões recebidas são registradas no livro da vida em que se
escreve tudo e tudo, depois, se pode ler. A doença tende a imunizar-nos, o erro a
instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos. Tudo é utilizado e
transmitido e a vida imortal assim se enriquece e assim acumula para si um patrimônio de
heranças complexas, através de longuíssimas e milenárias experiências que o nosso
organismo torna suas e nas quais possui a riqueza de uma sabedoria biológica imensa que
cada qual leva consigo, sem imaginá-la. Assim, na batalha entre suas forças
antagônicas, a natureza se revela uma hábil harmonizadora, demonstra ser uma potência
benfazeja, sábia, previdente e protetora, que de um desequilíbrio sabe fazer um elemento
dinâmico e criativo, de uma dissonância, uma harmonia, de um dinamismo contraditório,
uma personalidade original e potente.
Estas observações nos deixam no campo estritamente biológico e não são suficientes
para resolver o problema da responsabilidade moral e exaurir o da hereditariedade. A
personalidade humana resulta ainda de outras forças e de outras posições. Temos aqui
observado a luta no seio do binômio horizontal e não ainda a do binômio vertical, com
que se combina a primeira. Acima destes conflitos biológicos, está o mundo moral do
espírito e abaixo está o ambiente, com todos os seus assaltos e resistências. Esta
personalidade, resultante dos dois elementos, pai e filho, cruza-se e combina-se com a
outra, constituída do binômio espírito-matéria, eu interior e ambiente externo. A
personalidade completa é o resultado de todos esses elementos e movimentos. Que riqueza,
mas que extenuante martelamento! A natureza, que se compraz tanto com o definir em forma
concreta e preciosa suas formações, não admite ócios e preguiças, mas impõe em cada
momento o exame dos valores e a correspondência da forma à substância.
O acordo
resultante da fusão dos elementos herdados da linha paterna e materna deve a seu turno,
logo que se forma, lutar com o ambiente por equilibrar-se também em um acordo nesta outra
direção. A isso se limitam os esforços da vida nos casos mais comuns, no seio de uma
natureza que é também economizadora de energias. Certo que a personalidade, ainda que
limitada a esses elementos, ainda que utilizando-se do patrimônio hereditário das
longuíssimas experiências adquiridas e atingindo os dois reservatórios paterno e
materno que continuamente se cruzam, deve executar sempre um trabalho próprio de nova
aquisição, enriquecendo aquele capital com o investi-lo de novas combinações, com o
usá-lo na sua própria atividade, com o completá-lo com novas aquisições obtidas da
experimentação no ambiente. Após te-lo assim incrementado, aquela personalidade, do
mesmo modo que o recebeu como dom, deve, por sua vez, transmiti-lo como dom. Conquanto
sejam esses os comuns labores da vida, nada impede haja outros diversos a que o normal
escapa. Muito mais complexa se torna a existência, áspera a luta e difícil o acordo,
mas, em compensação, ela se faz mais rica de desequilíbrios dinamizantes e criadores,
quando aí se manifesta e aí funciona com forças preponderantes o elemento espiritual,
carregado, por sua vez, de uma bagagem própria de experiências pessoais, largamente
desenvolvido, ansioso portanto de viver uma vida própria e de afirmar-se diante dos
outros elementos da personalidade, de tal sorte que pode desafiá-los e por-se em luta com
eles.
Então, a personalidade, desde que seja mais extensa e mais rica e represente para
si um mais complexo concerto de ressonâncias, torna-se também um campo de batalha mais
vasto, no qual a harmonização é mais difícil de obter, de vez que a síntese unitária
do eu não ocorre só no plano orgânico-psíquico, mas também no mais alto plano
espiritual. Tal é o caso do tipo evoluído. Então, todo o penoso labor resultante da
colisão das forças da personalidade, da concordância ou discordância dos ritmos, não
se limita ao binômio horizontal pai-mãe e ao ambiente, mas se projeta para as altas
zonas do espírito, procurando aí e não no plano biológico a sua solução. Então, as
correntes dinâmicas navegam e se cruzam em todos os sentidos: a luta biológica do macho
contra a fêmea ( pai-mãe ) e da fêmea contra o macho ( mãe-pai ) se cruza com a luta
moral e material, respectivamente, do espírito contra a matéria ( espírito-ambiente ),
e da matéria contra o espírito ( ambiente-espírito ); os antagonismos do binômio
vertical martelam o corpo físico e daí nasce aquele processo de maceração que
amadurece e evolve.
Observamos acima esta elaboração evolutiva, em cujo exame
prosseguimos aqui. De todo esse laborioso esforço originam-se indivíduos cada vez mais
especializados. Mas, se de um lado parece que a natureza se encaminha para o
individualismo, isto é, para um separatismo que insula e afasta o indivíduo do corpo
social, vemos, de outro lado, que ela depois retoma essa tendência e procura
reequilibrá-la, agarrando de novo o indivíduo para enquadrá-lo naquelas múltiplas
unidades sociais que são os coletivismos modernos. É que a célula-indivíduo se
apresenta diferenciada, não para si, nem para destacar-se no insulamento, fora da unidade
da natureza, mas para ser utilizada em uma ordem social mais vasta, com funções
apropriadas às características qualidades adquiridas.
Dissemos que a visão estritamente biológica não é suficiente para exaurir o
problema da hereditariedade. A ciência se limita a julgar os dois elementos do
binômio horizontal e o elemento inferior do binômio vertical, desdenhando do
superior. Os instintos, as idéias inatas, as qualidades adquiridas derivadas da
experiência ambiental e transformadas por repetição habitual em automatismos,
seriam segundo essa ciência adquiridas, não pela personalidade espiritual
eterna, capaz de conservá-las e restituí-las no momento em que fossem úteis,
através de uma longa série evolutiva de menores vidas corpóreas encerradas na
alternativa nascimento-morte, mas seriam adquiridas em virtude de uma memória
biológica, celular, e nesta depositadas e conservadas.
Em "A Grande Síntese", cap. LXIX - "A Sabedoria do Psiquismo" - cita-se,
entre outros coleópteros, o Cerambyx Miles, como exemplo de sabedoria
imensamente superior à sua organização e meios. Acrescentamos aqui o caso ali
apenas indicado, de um himnóptero, o Sphex, cuja fêmea depõe na areia, ao lado
dos ovos, um inseto que ela imobilizou com uma picada de seu ferrão, a fim de
que possa servir de nutrição à futura larva. Ora, o Sphex pica a vítima em um
ponto do dorso, precisamente onde se encontra o gânglio nervoso que preside ao
movimento. Desse modo, obtém uma provisão imóvel e, todavia, incorruptível,
porquanto se mantém viva. Como conhece aquele inseto anatomia e anestesia? Quem
lhe ensinou este fato anátomo-fisiológico? Dir-se-á: a experiência! Mas, os
insetos vivem poucos meses e as larvas nascem quando os progênitos e toda a
geração precedente desapareceram. Logo, não é possível nenhum ensinamento,
nenhuma imitação. Por ventura é o inseto provido de uma sensibilidade tal que o
torne apto a perceber as radiações transmitidas pelo órgão percutido, de modo
que pode assim localizá-lo? Mas, ainda que assim fosse, quem o induziu a
percuti-lo e quem o informou das conseqüências? A quem cabe o raciocínio por
virtude do qual se encontra a relação entre todas as fases do processo lógico?
Aqui há um princípio inteligente no inseto e, dado que não pode te-lo criado por
si mesmo, ele deve ter-lhe sido transmitido. Mas, por que vias? Acaso são as
células que conservam a lembrança atávica? Mas, será suficiente esta via e serão
as células capazes de semelhante síntese racional? Isto é psiquismo. São-lhe
depositárias as células ou o é outro órgão? Este psiquismo contém a lembrança de
todas as experiências vividas durante milênios, no presente caso também aquelas
inerentes ao estado de inseto perfeito. A conservação de tão precioso patrimônio
hereditário e do novo que lhe ajunta continuamente a experiência, é confiada à
memória celular ou a um organismo imaterial em que se registram e fixam
definitivamente, em forma de qualidades adquiridas, as correntes vibratórias
provenientes do ambiente?
Segundo a ciência, a memória biológica residiria na célula que em si leva
inscrita sua longuíssima história, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da
filiação e derivação direta da célula germinal hereditária. A essa história do
passado cada vida ajunta sua nova experiência, soma-a à precedente e com esta,
que é assim completada e corrigida, transmite-a. Seria uma espécie de
reencarnação celular, em que a continuidade das vidas sucessivas não seria
confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercorpóreo, mas à
persistência das impressões celulares. É certo que o ambiente age e
continuamente impressiona o nosso ser, que a repetição aí fixa estados habituais
ou automatismos e que estes tendem a radicar-se aí em forma de instintos ( cfr.
"A Grande Síntese, cap. LXV: "Instinto e Consciência"). É certo também que,
por hereditariedade, se registram e transmitem todas as nossas experiências. Mas
o problema consiste em saber como, por qual mecanismo e via a célula se
impressiona e como conserva estas impressões.
Para compreender o fenômeno, é necessário reduzi-lo à sua substância
cinética. Trata-se aqui de correntes de vibrações, de ritmos, de movimentos
ondulatórios que se transmitem e se imprimem. Pelas vias nervosas e sensórias,
os movimentos vibratórios do ambiente externo penetram no organismo. Esta
contínua penetração é um fato indiscutível. Aquelas vias são como portas
escancaradas. Nosso organismo é também uma orquestração de ritmos. Os movimentos
vibratórios entram, avançam, investem e penetram cada vez mais profundamente a
estrutura orgânica, percorrem-lhe as vias e saturam-nas. Deverão deter-se no
último termo a que chegamos em nossa decomposição analítica, isto é, eles se
fixarão, sob forma de deslocamentos de trajetórias, nas trajetórias já
existentes nos movimentos atômicos ( cfr. "A Grande Síntese", cap. LV: Teoria
dos motos vorticosos ), movimentos atômicos de que resulta composto, em
progressiva complexidade, o sistema cinético-dinâmico molecular, celular,
orgânico, psíquico. A ocorrência de repetição, como determinante de
automatismos, confirma esta ação cinética de um lado e cinética
impressionabilidade de outro. Talvez se trate de atividades electromagnéticas.
Daí derivaria a memória celular. Considerando que os vários elementos
componentes são reagrupados segundo a lei das unidades coletivas ( cfr. "A
Grande Síntese", cap. XXVII ), e considerando que em todas as organizações
maiores permanecem os fundamentais movimentos atômicos, verifica-se, em virtude
disso, a possibilidade de obter sínteses progressivas até a máxima que se nos
revela sob forma de consciência. Os resultados cinéticos da experiência se
imprimiriam assim em todas as células do corpo e, por hereditariedade, se
transmitiria e se receberia esta sabedoria adquirida na raça e comum a todos,
que cada indivíduo levaria consigo, qual depositário dela, para usá-la, em
proveito próprio, conservá-la, enriquecê-la e enfim transmiti-la aos seus
descendentes, para sua vantagem e assim sucessivamente. Esta sabedoria seria
concentrada através dos órgãos nervosos e cerebrais, na síntese máxima do
psiquismo, a última resultante das experiências da vida.
Dissemos: sabedoria por enriquecer e por transmitir. Duplo, pois, é o
trabalho: de experimentação nova, para enriquecer, de conservação do velho e do
novo, para transmitir. Temos, pois, dois tipos de registração cinética: a
recente e a atávica, a nova e a velha, aquela que nós fazemos e aquela que
fizeram os nossos antepassados. A primeira conduz à captação e fixação dos
movimentos de variação da espécie; a segunda representa na raça as qualidades
mais profundas e mais estáveis, que se fixam em todas as células, não em via de
aquisição, mas hereditárias. As duas diversas funções, isto é, o deslocamento e
a conservação das trajetórias, seriam confiadas a dois sistemas de células: de
um lado, os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrionária e, do
outro, o sistema de todas as outras células. Dois sistemas, pois, que culminam
em duas sínteses psíquicas: a primeira, temporária, individual, representando a
porção pessoal de vida do indivíduo; a segunda, coletiva, eterna, representando
a espécie e a sua vida em continuação. Dois psiquismos, portanto: aquele
operante, ativo no armazenamento de novas qualidades, formador do eu na
experimentação, registrador, receptivo, assimilador e fixador de novas
experiências biológicas por transmitir ao outro sistema, o atávico, conservador,
do qual elas ressurgem e pelo qual são restituídas, sob forma de qualidades
hereditárias e de instintos, de idéias inatas e capacidades adquiridas. Os dois
sistemas giram, um em torno do outro, segundo o habitual esquema do par de
forças contrárias e complementares de que resulta composto o binômio de toda
unidade, de acordo com a universal lei de dualidade.
Tudo isso pode ser persuasivo. Todavia, permanece sem solução o problema das
impressões, isto é, das novas características cinéticas que nos movimentos
atômicos se vão continuamente formando. Ei-nos no último termo do problema da
hereditariedade. Como conciliar a persistente identidade do eu que permanece tal
como é não obstante a mutação de suas qualidades e a renovação contínua e
completa dos materiais constitutivos do psiquismo? Ao invés de ser confiada a
uma memória celular, não será então a conservação das impressões, confiada a uma
memória espiritual, situada em um organismo imaterial, chamado alma? Se a vida é
um metabolismo, uma corrente, que é que lhe impede a dispersão e lhe mantém
compacta a unidade? Sem dúvida, trazemos conosco, ao nascer, os resultados de um
passado. Mas, onde foi ele escrito? É certo que imaginar uma transmissão
hereditária exclusivamente pelos trâmites da célula germinal e por sua
capacidade de conter todos seus futuros desenvolvimentos e, depois, de guiá-los
de tal modo que saiba reconstruir o ser completo, é tão difícil quanto imaginar
uma transmissão hereditária por restituição de vibrações provenientes de um
organismo espiritual que, inserindo-se no organismo físico, pelas vias
imateriais da percepção interior, lhe guie o desenvolvimento ( ideoplastia ).
Tanto mais que o primeiro sistema não pode ser suficiente para transmitir todas
as registrações da espécie, porque as melhores experiências, as da maturidade,
adquiridas após a idade da reprodução, que é fenômeno juvenil, permaneceriam sem
veículo, incomunicáveis. O melhor andaria então, perdido, e a vida dos solteiros
se tornaria inútil para a raça, porque inaproveitada. Ora, como pode a natureza
deixar-se iludir em um ponto de tão vital importância, dos mais custosos e
preciosos resultados? Como pode ela, que é tão previdente e parcimoniosa,
abandonar as mais importantes experiências da vida, que são as espirituais, que
se processam até a senilidade? Como é possível uma tão flagrante contradição com
a habitual economia da natureza? Então o melhor andaria disperso, muitos
esforços teriam sido vãos e o seu produtor ficaria destruído, outra flagrante
contradição em um mundo em que nada se poderia destruir e no qual estas forças,
como tudo, devem ressurgir. E, então, como poderia progredir uma raça que não é
capaz de acumular senão experiências elementares e juvenis? Não! Não é possível
que a vida seja assim mutilada precisamente no centro de seu sistema que, embora
tão perfeito, se tornaria então imperfeito no ponto mais substancial, de tal
modo que fecharia a via do progresso com a evasão das mais altas experiências da
raça.
Não basta, pois, a hereditariedade fisiológica. Se os filhos se assemelham aos progenitores, freqüentemente diferem deles e, muitas vezes, os superam. A
genialidade não é hereditária. O fenômeno, sem dúvida, deve ser bipolar e, como
tal, não pode constituir exceção à universal lei de dualidade. Na realidade,
onde tudo é duplo, deve sê-lo também a hereditariedade, isto é, ela deve ocorrer
em ambos os caminhos, em posições e com funções complementares. Como dois são os
eixos constitutivos da personalidade ( pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas
formas de luta, dois os sistemas de forças e duas as evoluções( material e
espiritual ), é lógico que duas sejam também as formas de hereditariedade em
correspondência com os dois eixos, é lógico que a cada forma de luta corresponda
a sua meta e que a cada tipo de evolução, como cada sistema de forças, tenha o
próprio e relativo canal de transmissão. As forças caminham e a acumulação das
experiências deve culminar em algum resultado. Quem se limita unicamente à
hereditariedade fisiológica esquece-se do mundo imenso do espírito, dos valores
morais, onde, com plena responsabilidade, se cumpre o nosso destino.
Temos seguido o caminho da ciência para mantermo-nos positivos e chegamos aos
movimentos atômicos, a deslocamentos de trajetória, a ações e reações cinéticas,
a absorção de ritmos, a movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se
desmaterializa em nossas mãos e se traduz naquele imponderável que é a
característica do espírito. Quando chegamos ao fundo, percebemos que o fenômeno
é como desfeito e dele nada mais resta que um jogo de forças, uma estrutura de
vibrações, um dinamismo imaterial que tem muito das características do espírito
e de suas invisíveis atividades. Mas, então, a oposição, que parece de verdades
entre materialismo e espiritualismo, se resolve em mera questão de palavras,
pois que por fim tudo termina no mesmo ponto e acaba por descobrir a mesma e
única verdade e por exprimir, em substância, a mesma coisa. Quando temos
percorrido até o fim as veredas da ciência e da matéria, exclamamos: mas isto é
o espírito! E efetivamente é o espírito. Temos visto que ele, no binômio
espírito-matéria, está igualmente presente no polo oposto e que o mistério do
psiquismo se estende até às profundezas da célula. Dissemos que o eu é duplo,
não está só no centro, mas também na periferia; que o espírito central está
também em todos os pontos da periferia; é o centro e a periferia. Dissemos
também que a registração atávica, a sabedoria adquirida pela raça está infusa e
difusa no sistema de todas as células do corpo. Mas, então, falar deste é, em
essência, falar de espírito, uma vez que sua substância pode traduzir-se
cientificamente em uma orientação de cinética atômica e uma vez que o psiquismo
está presente até na intimidade da célula. Ocorre então, esta pergunta: "É,
pois, o espírito a causa ou o efeito do sistema? Ou, por outra, é ele o motor
determinante das correntes de consciência diretoras do funcionamento orgânico,
ou é a síntese das correntes de consciência derivantes dos sistemas celulares?"
Para Renan a "alma é uma resultante das forças do corpo". Mas, pode
objetar-se: se é natural que a síntese de correntes de consciência derivadas dos
sistemas celulares atinja o plano biológico, como poderá ela elevar-se até o
mundo moral que é qualitativamente de todo diverso? Equilibremos, então, o
antagonismo. O homem, por necessidade de luta imposta por sua natureza bipolar,
é em geral separado e participante. Materialismo e espiritualismo exprimem
unilateralmente cada um, sua parcela de verdade. À questão de saber se o
espírito é a causa ou o efeito do sistema, respondemos como acima dissemos: a
causa está no efeito, o efeito está na causa. Trata-se, apenas, de dois termos
da mesma unidade bipolar, apenas de um caso da universal lei de dualidade. Temos
chegado ao limite, onde nós superamos o binômio e saímos da contradição. Tocamos
aqui o limiar daquele mundo superior onde a grande ilusão da forma desaparece e
tudo se unifica na mesma verdade.