O PROBLEMA DO DESTINO E DO IMPONDERÁVEL
Pietro Ubaldi
1951
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A
gradeço ao público, a que tenho a honra de falar, pela atenção que me
concedem. Lerei esta noite um trabalho meu sobre o importante problema de nosso destino.
Inicio logo o argumento, estabelecendo a pergunta: existe em nossa vida um destino? E,
se existe, até que ponto tem ele o poder de enlaçar nossos atos? Existe nestes uma zona
de fatalidade? E até que ponto esta exclui nossa responsabilidade? Devo presumir, como
já admito, o princípio de causalidade; mas pergunto: até que ponto o efeito é ligado a
causa de modo a excluir o livre-arbítrio?
Tentemos responder a estas perguntas, procurando penetrar no mundo do imponderável,
cujo funcionamento veremos depois.
A atuação de uma ação nossa representa o arremesso de uma força de nossa
personalidade espiritual sobre o mundo exterior. Essa força segue uma trajetória
própria e sofre as leis do mundo dinâmico. Nossa responsabilidade também é uma força
lançada sobre seu tornar-se, ao longo do caminho da evolução. Esse paralelo com o mundo
dinâmico nos indica o que sucede no mundo imponderável de nossa personalidade.
Quando lançamos uma pedra, somos livres de lançá-la com a força e na direção que
quisermos, mas, depois, uma vez lançada, a pedra seguirá por si mesma através do
espaço, como um ser autônomo, com impulso próprio e uma trajetória sua, até o
esgotamento do impulso que de nós recebeu. Enquanto está em sua fase de causa, o
fenômeno assume caráter de livre escolha; contudo, em seu segundo aspecto, isto é, em
sua fase de efeito, assume caráter de determinismo.
Este paralelo entre o mundo dinâmico e o mundo do pensamento e da ação humana, é
lógico e autorizado em um universo orgânico como o nosso, dirigido por um princípio
unitário e por esquemas únicos, repetidos em várias altitudes e em todas as
combinações possíveis. É precisamente este indiscutível fato da estrutura orgânica
do universo, que nos permite deduzir, partindo das zonas conhecidas, as relações das
zonas ignoradas. Somente com este sistema é hoje possível sondar o imponderável,
descobrir-lhe as leis e estabelecer-lhe o funcionamento, chegando a resultados que o
enquadram na fenomelogia universal, satisfazendo perfeitamente a nossa razão. Não
podemos pedir à ciência positiva e objetiva que aceite os resultados que assim obtemos,
senão como hipótese de trabalho. À análise competem, posteriormente, a prova e a
demonstração. Enquanto isso não se der, porém, já foi obtida a orientação, fato que
permite dirigir a pesquisa na direção dos gânglios vitais dos fenômenos, sem
dissipá-la em contínuas tentativas.
No arremesso, portanto, de nossas ações, da parte de nossa personalidade espiritual,
acontece precisamente o que se verifica no lançar de uma pedra. Todo o nosso ser se
centraliza em nosso eu ou espírito, que é justamente um organismo de forças, donde é
lançado aquele impulso que se dirige do interior imponderável para o ambiente externo,
onde, sob a forma de ação, se imprime na sua manifestação material, concreta. É assim
que o imponderável atinge sua expressão exterior, objetiva, verificável pelos sentidos.
Observemos o mecanismo deste fenômeno.
As forças que nós, com nossas ações, movimentamos no passado, representam, uma vez
lançadas, uma vontade autônoma, um impulso que automaticamente, por inércia, tende a
continuar movimentando-se e a conduzir-nos adiante, na direção inicial. Se,
inicialmente, nós movimentamos nossas obras, agora elas nos movimentam, arrastando-nos
não para onde hoje queremos, mas, para onde ontem quisemos. O passado não morre, mas
revive sempre no presente. Nossas obras nos acompanham. Em face de tal estrutura orgânica
da vida, em que se observa uma concatenação causal, a longo prazo, onde o presente é
preparado pela passado e o futuro se baseia no presente, a filosofia carpe
diem é uma forma de inconsciência. A liberdade, que julgamos ser sempre virgem e
completa, só o é na fase inicial de nossas ações; ela não pode permanecer sempre no
estado neutro de escolha, mas se fixa e se coagula num determinismo que representa o
lógico encadeamento, por continuação, que vem desde o impulso dado. E este vem a
constituir também um impulso no nosso destino, ligando aquela liberdade às suas
próprias conseqüências; já agora não se pode impedir a continuação daquele impulso,
senão por um outro, corretivo e contrário. Assim, nossas obras, nascidas por nossa
vontade, tornam-se vivas e, como que animadas por uma vontade própria, são ativas e agem
por nós, como criações nossas.
Nossa personalidade é um fenômeno continuativo em que os momentos sucessivos de seu
tornar-se se acham entrosados, em que as forças por nós tornadas próprias se determinam
e se arremessam, não podendo ser anuladas senão depois de completo desenvolvimento e
exaustão. Elas formam, por qualidade e quantidade, a nossa força; e o passado fica
fazendo parte de nós tanto quanto o presente. Elas vêm a ser a definição de nós
mesmos, um fato completo que não é fácil modificar; vivem em nosso destino sob essa
forma de fato que, no entanto, nunca é absoluto, pois no movimento incessante da vida é
sempre suscetível de retoques e alterações.
À medida que nossa vida prossegue, o novo que nos chega cada dia, se já não nos
estava anteriormente vinculado, é livre e no curso de nossa vida, com as nossas ações,
nós o encadeamos. Assim avançamos, ligando nossa própria liberdade a esta ou aquela
coisa, até que o impulso se esgote e a trajetória finde. Em se desenvolvendo, porém, o
fio da vida traz sempre uma nova e virgem liberdade, que vamos sucessivamente encadeando e
cristalizando no determinismo, até que a abandonemos no passado, assim cristalizada,
após haver concluído o ciclo da experiência. A liberdade é interior, situa-se no
centro da personalidade, vive no reino das motivações; é daí que a atividade se dirige
para a periferia e se expande no mundo exterior da manifestação, que é o reino do
determinismo. Tanto esse ligar-se como esse extinguir-se no determinismo correspondem às
características dos dois mundos, interior e exterior, que as forças motrizes de nossos
atos percorrem, nascendo no primeiro, centro da personalidade, e extinguindo-se,
esgotando-se no segundo, na periferia, no mundo exterior.
Assim como com a germinação constante de novas ações, uma sempre nova e intacta
liberdade nos espera; assim também no período de sua maturação um farnel de fatalidade
sempre nos acompanha e nos envolve como uma nossa atmosfera, formando uma espécie de
casca dinâmica que aprisiona nossa personalidade. É a Nêmesis da vida, que pode
esmagar-nos ou erguer-nos, como ontem quisemos que hoje fosse. Do mesmo modo que os filhos
exprimem as qualidades dos genitores, assim aquelas criações testemunham nosso passado e
querem viver, manifestar-se e agir tais quais são, sendo impossível destruí-las ou
impor-lhes silêncio. Elas gritam por si mesmas e querem como nós a quisemos. É delas o
poder de afirmar: este é inocente, ou: este é culpado. Podem
abençoar ou amaldiçoar, pedir um prêmio ou exigir uma punição. Se foram movimentadas
para os caminhos do bem, tendem a salvar-nos; se o foram para as vias do mal, não se
deterão enquanto não conseguirem desgraçar-nos. E isso porque representam uma causa que
reclama seu efeito, um impulso que quer esgotar-se na direção em que foi lançado.
Qualquer que seja sua natureza, do bem ou do mal, tenderão sempre a percorrer o seu
caminho até o fim e não descansarão enquanto não consumirem todo o impulso recebido. O
bem e o mal, na realidade, existem personificados nessas forças. As do mal nos
perseguirão como Erínies enfurecidas, gritando a todos nossas culpas e
clamando por vingança, lançando-se contra nós, mordendo e despedaçando-nos. A
tragédia humana está cheia delas. Como nos defendermos de um inimigo que está dentro de
nós? Impossível nos escondermos. Impossível fazê-lo calar: não há barreiras de força
ou de astúcia que o consigam. Eis então o armadíssimo involuido - desarmado, o lutador
não mais sabe lutar; o forte está intimamente derrubado e arruinado. Eis que o homem
involuido, pelos caminhos sutis do imponderável, tornou-se realmente um vencido.
Desanimado diante do inacançável inimigo, que não consegue compreender, sofre e se
humilha, para compreender. Aquelas forças são inexoráveis, são o destino, representam
a lei de Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e que, fatalmente, reconduz
agora cada coisa a seu lugar. Os recursos humanos esmigalham-se contra essas potências
silenciosas do destino. Elas abatem qualquer defesa, transpõem todas as portas, do rico
ou do pobre, do poderoso ou do humilde. Uma única coisa as detém, inofensiva como a
palavra de uma criança, leve como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma
oração: a inocência. Sermos inocentes! Essa pequena coisa se encaminha na direção da
impetuosa potência da força e a faz parar, porque isto quer a Lei: que o honesto seja
defendido e a justiça triunfe.
Se, ao invés do mal, implantamos o bem em nosso passado, as criações que geramos
serão de natureza completamente diversa. Também com o tempo crescerão, tornar-se-ão
maduras, atingindo o seu efeito no mundo externo da manifestação das causas. Em lugar,
porém, de assediar-nos a vida como inimigos, lançando sobre nós o sofrimento, estarão
ao nosso lado, acariciando-nos, encorajando-nos como nossos amigos mais queridos.
O involuido não sabe que o presente não se improvisa, não se forma apenas do
próprio presente, e, sim, em grande parte do passado; também não sabe que a vida, no
seio de um organismo complexo e perfeito qual é o universo, não é uma louca aventura,
e, sim, um crescimento lógico e orgânico. Coisa alguma se improvisa do nada, mas, tudo
volta e torna a voltar nas ondas do tempo, tudo se liga aos grandes ritmos da Lei, em
conexão com suas causas, de que não pode separar-se, avançando por graus e por fases:
germinação, crescimento, manifestação, esgotamento. No universo tudo está unido pela
lei de causalidade, que tudo encadeia no desenvolvimento do tempo. Coisa alguma nasce
senão por filiação, isto é, através duma derivação causal; e por isso, tudo revive
sempre indestrutível nas suas conseqüências, em que necessariamente se continua. Como
no filho se desenvolve o pai, como a árvore é o desenvolvimento da semente e a ação
nasce da motivação, assim também, por uma concatenação inseparável, toda causa se
prolonga no seu efeito.
Todo fenômeno, no seu movimento evolutivo através do tempo, oscila entre estes dois
extremos, constituindo um dualismo que não se isola numa forma fechada: princípio - fim,
mas que se engancha continuamente no seu extremo final como um novo extremo inicial e se
alonga, assim, ao infinito.
Se, portanto, pela lei da causalidade, tudo é filho do passado, a vida se torna,
então, um jogo vasto e complexo, por longas preparações, e a vitória é determinada
por dinamismos acumulados que emergem de um armazém interior, que pode estar cheio ou
desprovido, rico de provisões benéficas ou maléficas, úteis ou venenosas - o
misterioso armazém da alma que o homem involuido não enxerga.
As posições terrenas são aparentes e iludem. Por isso, o pigmeu pode ser
substancialmente um gigante e o gigante, um pigmeu. Daí a invisível força de tantos
inermes, a desconhecida grandeza de tantos humildes. A posição humana exterior é
fictícia. A casa interior pode ser habitada por amigos ou inimigos, pelo bem ou pelo mal,
por anjos ou demônios.
Eis o armamento moral do homem evoluído: as boas obras, o haver cumprido o próprio
dever, isentando-se de sanções, ser inocente de culpas. O nosso passado já está feito
e lançou a trajetória de nossa vida. Assim como uma longa evolução orgânica construiu
o nosso atual tipo biológico que, qual é, resiste a qualquer rápida deformação ou
mudança, também através de um longo caminho se formou e definiu nossa constituição
moral, viveiro de instintos aninhados no subconsciente e radicados bem longe, no passado.
A forma é definida, mas não definitiva, porquanto o transformismo continua sempre e nada
pode considerar-se definitivamente fixado. Permanece sempre aberta a porta para a
expiação e a correção, pois a liberdade, embora enlaçada pelas conseqüências do
passado, permanece inviolável e inviolada, sempre senhora de introduzir no destino novos
impulsos e, com novos esforços, corrigir-lhe, como quiser, a trajetória. Suprimido o
peso do passado que nos prende, o futuro é sempre livre.
Uma das principais características deste mecanismo de forças é a possibilidade de
isolar o próprio destino de um destino alheio. Ao lado de cada um falam e entram em
ação as suas obras e não as do próximo. Cada um pode semear em seu campo o que desejar
e ninguém pode fazê-lo em seu nome. A semeadura é livre, porém, a colheita é
obrigatória. Somos livres, mas, responsáveis. Absoluta é a independência no semear o
bem ou o mal; também absoluta é a obrigatoriedade de recolher o fruto de toda a
semeadura. Eis porque o sábio procura nas causas profundas e longínquas as raízes de
seu estado presente e com uma previdência que enxerga ao longe prepara seu futuro. Não
importa se os outros ignoram estas leis. Quem erra paga pelo erro, e pagando aprende. A
maravilhosa justiça da divina lei está, porém, nisto: cada um permanece livre e, em
qualquer ambiente em que viva, pode, como quiser, perder-se ou salvar-se. A beleza está
no fato dessa liberdade permanecer sempre garantida e o indivíduo ser independente,
senhor absoluto, sempre, do próprio destino, senhor de construí-lo a seu modo, em
qualquer tempo e lugar. Assim, num mundo em que o involuído, que não sabe, com seus
sistemas impera e triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que sabe, de escolher e
seguir o seu caminho, nele recolhendo frutos abundantes. Conforme a ação que se
antepõe, a Lei dá a cada um sua resposta, sabendo contemporaneamente funcionar,
comportando-se diferentemente em planos e formas diversas. Desse modo, a fundamental
liberdade de cada indivíduo é a tal ponto respeitada, sem ofender o princípio de
responsabilidade, que ele pode sempre separar seu destino de qualquer destino alheio, pode
conservar a mais completa autonomia de trajetória no meio do mais complexo entrançamento
de forças, pode atingir as metas que quiser; pode perder-se, livremente, no meio da
salvação de muitos, ou salvar-se no seio da perdição universal. O resultado é
garantido, tanto no bem como no mal. O justo pode, assim, avançar em seu caminho, embora
colocado num mundo de demônios. É o próprio passado, as obras, o mérito, o que importa
diante de Deus.
A Lei responde com a voz com que a chamamos e é tão rica que sabe responder a todas
as vozes, de acordo com o mérito de cada qual. Então, é possível ao justo apelar, não
mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele superados, mas para a divina
justiça e desta receber uma resposta direta, isolada no seio de um mar de respostas
diferentes; é possível receber um tratamento de bondade e de salvação, no seio de um
cataclismo universal. E assim, o evoluído pode marchar com um destino todo seu,
independente do de seus semelhantes, do da própria humanidade. Enquanto os outros, pelos
seus métodos de luta, se destroem, alternativamente arrastados pelo turbilhão de força,
presos pelo ódio recíproco à sua destruição, o evoluído, inocente das culpas do
mundo, poderá seguir seu destino, totalmente seu, de alegria e de paz. As forças do
imponderável terão formado em torno dele um invólucro protetor, uma defesa salvadora,
que o torna invulnerável, porque inocente, em meio aos mais graves perigos que arrastam
os outros.
Deixemos aos juristas o estudo dos caminhos da justiça humana, que tem simplesmente
escopos defensivos de uma classe dominante ou de toda a coletividade social. Ocupamo-nos,
aqui, da justiça divina, que não é, como a humana, um produto da luta pela vida, mas,
sim, um produto do universal princípio de ordem e equilíbrio que tudo governa.
No que livremente quisemos no passado é que se encontra a origem do destino, que
depois nos prende à alegria ou à dor. Está, assim, no que merecemos, a razão das
adversidades que nos ferem. O homem, em lugar de reconhecer que errou, prefere lançar a
culpa sobre os outros. Nosso intelecto, porém, tem necessidade de descobrir no princípio
causal do universo as características de uma absoluta justiça e somente assim a
encontra. Sentimos por instinto, e a voz da nossa consciência nos diz que é justo
sofrermos as conseqüências somente do que pessoalmente merecemos por nossas próprias
ações. Sentimos que se isso não fosse verdadeiro em um caso apenas, toda a ordem e o
equilíbrio do universo seriam abalados. Temos, instintivamente, necessidade de crer nessa
justiça substancial que está além da justiça formal e exterior da sociedade humana. É
à essa mais profunda justiça interior que nosso espírito recorre, apelando para o
supremo tribunal de Deus. Andamos buscando essa justiça nos acontecimentos humanos e
ficamos desiludidos e insatisfeitos por não a acharmos. E a renunciamos, constrangidos.
E, no entanto, ela existe, e existe sempre. De outro modo, desabaria o universo. A
perfeição de Deus não tolera em si qualquer injustiça.
É regra geral que, quando um problema nos parece insolúvel, isso se deve ao fato de
havermos partido de premissas erradas; devemos substituí-las. Todos os problemas têm que
ser solúveis. Quando num caso qualquer nos parece triunfar a injustiça, isso não pode
provir senão de defeitos de observação. Costumamos observar apenas os poucos dias desta
breve vida humana, mas, a justiça, dada a eternidade do espírito, não se pode realizar
toda senão nessa eternidade.
Diz-se que Deus não paga o sábado. Porque a justiça divina não tem pressa de pagar,
desejaríamos admiti-la inexistente. Realmente, o nosso destino é um campo de forças em
que se encontram traçadas todas as trajetórias das ações por nós iniciadas, e cada
uma delas tem que atingir, até a meta, seu esgotamento. Toda a lógica inexorável do
funcionamento orgânico do universo nos grita isso e não existe força ou ignorância que
possa fazer calar esse grito. Estes problemas não se resolvem com a mesquinha
preocupação apriorística de não se vestirem eles de uma ou outra teoria, própria
desta ou daquela escola. A verdade não pode ter preconceitos. Se tememos encontrar o
obstáculo do reincarnacionismo, iremos de encontro ao da injustiça de Deus, ou, então,
concluiremos com a imperscrutabilidade do mistério, isto é, declararemos insolúvel o
problema; e isso prova que nos enganamos em suas premissas. Se não quisermos, pois,
concluir com a injustiça ou o mistério, isto é, falir nas conclusões, perdendo-nos no
caos, deveremos mudar as premissas. Só assim resolveremos o problema do destino humano,
da liberdade e do determinismo que nele se encerram, da responsabilidade e da justiça
segundo o mérito. Só assim resolveremos tudo em harmonia com tudo; de outro modo, nada
explicaremos.
O exame do problema do destino levou-nos a observar um mundo de forças que escapam aos
nossos habituais meios de observação, mundo das causas, mundo de que depende tudo o que
sucede posteriormente no plano sensível dos efeitos. Procuremos agora compreender como
funciona esse imponderável, que se assemelha a bastidores dos acontecimentos de nossa
vida, de que tudo se deriva. Podemos, assim, ainda mais aprofundar os conceitos
precedentes.
O mundo moderno, apressado e céptico, não imagina a presença do imponderável em
meio das coisas mais comuns da vida quotidiana.
Quando nos preparamos para a realização de qualquer objetivo, existe, de um lado, uma
nossa necessidade ou desejo, e de outro, um plano instintivo ou racional, que tende a
atingir a satisfação. Que é que abrange esse plano diante do oceano de incógnitas que
nos circunda? E essas incógnitas são forças presentes, reais e ativas, tanto que podem
desviar, a cada momento, o desenvolvimento de nossos planos, interferir na série
coordenada de nossos atos, neles introduzindo impulsos novos que, provenientes do
desconhecido, são para nós imprevisíveis. Para poder compreender e definir o
imponderável é preciso penetrar esse desconhecido. Esses desvios, que não conseguimos
prever, porque seus elementos nos escapam e são mais fortes que nós, nos assediam a cada
passo nos pequenos eventos individuais de cada dia como nos grandes acontecimentos da
história, dando à nossa vida um contínuo tom de incerteza. De fato, nunca estamos
verdadeiramente seguros, ao pormos em execução qualquer projeto, se acabaremos chegando
aonde queremos, ou se, pelo contrário, atingiremos um ponto completamente diverso do que
fixamos. Isso vimos na última guerra. O mesmo acontece em nossos problemas particulares.
Freqüentemente, uma coisa desejada com sagacidade e constância, não consegue êxito,
embora sabiamente preparada, ao passo que outras coisas que parecem, a princípio,
apresentar-se com mínima probabilidade de êxito, às vezes, imprevistamente, o conseguem
de modo completo. Que três quartos dos elementos do sucesso nos escapam, é um fato que
todos sabem. Agitamo-nos, assim, às cegas, conservando em nosso poder apenas uma pequena
parte dos elementos do triunfo e com tão poucas cartas na mão tentamos a vitória.
Tentamos. Os demais, que representam essa incerteza, se lançam à ventura e agarram por
acaso, desordenadamente, o que podem e o mais que podem. É evidente, contudo, que a
solução do problema do sucesso não se encontra no uso louco e desordenado, embora
prepotente e resoluto, daquela pequena parte de elementos em nosso poder e, sim, no
conhecimento e, portanto, na inteligente direção dos elementos contidos nos outros três
quartos que nos escapam.
Que contém essa grande zona de desconhecido?
Eis o que é preciso saber. Na vida, inclusive para alcançar êxito em nosso
mundo atual, necessitamos de mais bom senso e sabedoria. A força, em que hoje
tanto se acredita, se não a soubermos guiar, a ninguém servirá, reduzindo-se a
estúpida e violenta manifestação de um bruto: extermínio inconcludente.
Quantas coisas imprevistas estão de emboscada, no bem ou no mal, como alegria
ou dor, nesse imponderável que, embora no mistério, conduz tão grande parte de
nossa vida! Ao lado da zona bem definida, formada de coisas por nós mesmos
desejadas, que vasto campo em que preponderam o que chamamos circunstâncias,
surpresa, sorte, desgraça! A maioria, ignara e simplista, atribui todas essas
coisas, em peso, ao acaso. Ora, quem diz acaso revela a própria ignorância. A
quem sonda nas profundezas, porém, a estrutura da vida parece bem diferente. Uma
ausência de normas e de guia, um funcionamento sem lei, confiado totalmente à
desordem - é um absurdo. A direção, que é ato positivo, não poderia ser confiada
a um elemento negativo, que não se sustém por si mesmo e que só existe como
contraposto. A negação da ordem não pode ter a força de sustentar a perene
afirmação criativa da vida. Como o nada não existe senão como condição do ser,
igualmente o acaso só é consebível como desordem enquadrada em função de uma
ordem mais vasta, que o circunscreve e o conduz, em ordem, para superiores
objetivos.
Tudo no universo, inclusive o que aparenta fugir à disciplina e parece
casual, é regulado por normas e cada força se move, por concatenação,
objetivando uma precisa finalidade, segundo o princípio de causa e efeito.
Também onde as forças surgem ainda em estado caótico, caracterizando fases mais
involuídas, o pensamento e a vontade de Deus, íntima e ocultamente, detêm as
rédeas e governam o caos. É somente por essa razão que esse caos não se
transforma numa dança infernal de forças inimigas e não se dissipa no nada, mas,
gradualmente evolui, disciplinando-se numa ordem em que cada vez mais evidente
se manifesta a presença de Deus. O imponderável não é, pois, o acaso ou uma
desordem e, sim, uma ordem que não conhecemos.
O problema consiste, assim, em penetrar a lei desse funcionamento, de nós
desconhecido. Que significa a vida de um homem? Não é, certamente, um fenômeno
estático: é um feixe de forças em movimento. Em face do princípio de
causalidade, o problema é conhecer o caráter de cada uma dessas forças, quais
são atualmente, o caminho que elas percorreram até hoje. Só assim poderemos
determinar o que serão elas amanhã. Trata-se de nos conhecermos a nós mesmos, de
conhecer a personalidade humana em geral e, depois, nosso próprio caso
particular. O homem moderno não conhece nem uma nem outra coisa. Não é fácil,
porquanto são muitos os elementos: são impulsos recentes, outros distantes,
outros remotíssimos, de natureza e poder diferentes, e sempre em contínuo
movimento e desenvolvimento. São forças nossas e alheias entrelaçadas por uma
contínua interdependência de ação e reação; são forças já solidificadas em
determinismo, fixadas por longas repetições de atos em automatismos e instintos,
e forças ainda livres, em formação, que apenas começam a fazer parte do feixe
dinâmico que constitui a personalidade humana, forças ainda fluídicas, não
cristalizadas no destino, e que continuamente produzimos. Como nos orientarmos?
O universo é, entretanto, indubitavelmente, uma grande orquestração de
forças, um imenso concerto, em que também o homem emite sua nota, mais ou menos
consciente, mais ou menos livre, conforme sua evolução e vontade. Cada ato, cada
dia, cada vida segue e sobrevem, uma após outra, como ondas de um oceano sem
fim. Tudo é conexo no espaço e no tempo, e tudo avança na grande marcha
ascensional da evolução para Deus, para os objetivos pessoais, para mais vastos
escopos coletivos, numa hierarquia de finalidades orientadas todas para um único
centro: Deus.
Se o homem conhecesse todos esses elementos que se encontram nele e em torno
dele, sem dúvida conheceria seu futuro. O conceito de acaso, de caos e de
desordem não pode existir senão na forma mental do involuído. Só nos graus de
evolução superior à humana se pode ter a capacidade de abranger tão vastos
panoramas, que estão providencialmente escondidos ao homem atual, em face de
seus baixos instintos. Assim, atualmente, para ele, tudo o que está fora do seu
reduzido campo de exercitação, que lhe é necessário para progredir, tudo se
confunde num inextricável emaranhado que o deixa em trevas profundas. Eis porque
a palavra "imponderável" não pode assumir senão um significado negativo, de
desconhecido e incognoscível, quando, na realidade, possui um conteúdo positivo
e precisamente definível.
Para atingir este conteúdo, todavia, é necessário ainda evoluir,
distanciando-se do atual estado de animalidade. O homem de nossos dias não pode
compreender isso, porquanto se encontra dentro desse estado e é ele sua forma
mental; e um estado não se pode perceber quando se está dentro dele, mas, sim
quando se está fora dele ou dele se afasta. O homem atual navega num mar de
incógnitas, em que a direção dos acontecimentos, individuais ou coletivos, não
lhe pode ser confiada, porque ele é um cego, mas é mantida pela sabedoria das
leis de Deus. Entretanto, para que lhe seja possível evoluir, através de uma
livre experiência, por forma consciente e responsável, um pequenino raio de luz
lhe foi deixado, suficiente para lhe iluminar a estrada a percorrer. Aí ele
compreende, escolhe, semeia e ceifa, erra e paga, sofre a reação das forças que
possui e que somente ele mesmo pode movimentar. Quanto ao resto, nada sabe e
nada pode, tudo é determinismo, acima de seu poder e conhecimento e, portanto,
também responsabilidade. Não lhe resta senão entregar-se a Deus e à Sua
sabedoria.
Ao homem foram confiados um determinado dever e um pequeno campo para lavrar,
que é o seu planeta; só como simples espectador pode ele contemplar a direção do
universo, nos limites de sua compreensão. Realizado o seu trabalho no âmbito
estabelecido pela lei de Deus, para sua própria edificação, o resto pertence ao
próprio Deus, que distribuirá infinitas tarefas a quem e a quantos quiser.
Cumprido seu dever, ao homem não resta senão confiar no "Pai Celestial", que já
demonstrou saber tão bem dirigir o universo, trazendo-o até aqui, vivo e
esplendoroso, qual o vemos, trabalhando antes do homem e sem auxílio dele.
Quando, pois, o homem errar, que aceite de Deus a justa correção; e quando
souber adaptar-se à Sua ordem, Dele aceite a justa recompensa.
Quando falamos sobre um imponderável conhecível, referimo-nos às incógnitas
relativas ao homem e ao seu ambiente e também às do universo, que neles se
refletem. Se quisermos sondar o imponderável que mais nos interessa, o mais
próximo, relativo à nossa personalidade, maior é a possibilidade de conhecê-lo.
Com o cálculo das probabilidades já se tem experimentado estabelecer a lei que
regula o curso dos acontecimentos. Esse cálculo, porém, se refere às formas mais
simples e é uma abstração bem longe de corresponder à realidade. Nos eventos
humanos os elementos constitutivos são tantos e em tão grande parte
desconhecidos, que aquele cálculo falha completamente ao seu escopo. Se
reduzirmos, no entanto, o complexo feixe de forças que constituem um destino à
sua expressão mais simples, isto é, forças favoráveis ou contrárias, poderemos
ter uma idéia do seu provável desenvolvimento, numa determinada vida.
Se misturamos 50 objetos brancos e 50 pretos, perfeitamente iguais, a
probabilidade teórica de extração, para cada cor, é de 50%. Se misturarmos 25
objetos brancos, 25 pretos, 25 amarelos e 25 verdes, a probabilidade de extração
para cada um dos quatro tipos é de 25%. Se misturarmos 100 tipos de 100 tipos
diferentes, teremos a probabilidade de 1% para cada um deles.
Uma outra observação. O cálculo de probabilidades nos faz crer que o
desenvolvimento do fenômeno no passado nos autoriza a crer que no futuro ele
continue na mesma direção. O fato, porém, de a vida basear-se no equilíbrio, faz
com que suceda justamente o contrário. Quanto maior número de vezes se houver
verificado um fato, menor é a probabilidade, em virtude da lei de equilíbrio, de
ele realizar-se novamente no futuro. Segundo sua universal lei de dualidade, a
vida avança, não por acumulação de fatos, mas pela compensação de contrários. É
justamente esta a verdadeira lei que rege os acontecimentos humanos e, por isso,
também, a lei do nosso destino. Lei que vai da maior afirmação de Cristo no
Discurso da Montanha, ao caso em que a sorte mais vezes nos tem sorrido e que
dificilmente continua a sorrir-nos. Quanto mais o jogador ganhou, menos provável
é que continue ganhando. Eis as leis da fortuna, que absolutamente não é cega. O
homem comum imagina justamente o contrário. Quanto mais é feliz, mais se torna
confiante e seguro de si mesmo, mais é levado a ousadias; e assim se encaminha
para a derrota. Isso é precisamente a conseqüência de uma lei que visa
restabelecer o equilíbrio e a que ele, inconscientemente, obedece. E assim se
explica a queda, que nos parece incompreensível, de tantos grandes triunfadores
do mundo.
Não queremos pesquisar se, num estado relativamente originário, o ser humano
tenha gozado de 100% de felicidade e se desse estado caiu a uma percentagem de
100% de dor, nem se a evolução atual consiste em recuperar esses 100% de ventura
perdida. Hoje, todavia, podemos considerar, como relativo ponto de partida atual
um estado de equilíbrio, em que, dentro da justiça, o destino de cada homem
contenha 50 unidades negras, ou probabilidades desfavoráveis de dor. Poderia ser
esta, no atual estado evolutivo, uma posição mediana de equilíbrio a que
atualmente a Lei tende a reconduzir tudo, não obstante certas mudanças de
direção. Trata-se de uma ordem que, embora violada, tende automática e
providencialmente a reconstituir-se. Não desejamos aqui indagar se a Lei queira
mais do que isso nem se tende a forçar-nos uma reconstituição dos 100% de
felicidade. Por enquanto, apenas interessa observar que a transformação dessa
percentagem e as deslocações de equilíbrio podem ser produzidas pelo livre
comportamento do homem. Indispensável era, para que o homem pudesse evoluir,
através da experiência própria, que lhe fosse concedida a liberdade de violar a
própria ordem, de modo que ele pudesse conhecer as conseqüências dolorosas do
erro e aprender a abster-se dele. Em resumo, a evolução, objetiva produzir um
ser consciente do bem e do mal, um homem que sabe, e não um autômato, embora
perfeito. Desse modo, aconteceu que, pela liberdade concedida por Deus, de
abusar e errar para aprender, embora pagando duramente, o homem distanciou-se,
mais ou menos, do equilíbrio da justiça divina, alterando a proporção basilar de
equilíbrio, através da cadeia de suas várias existências sucessivas.
Assumindo toda a responsabilidade e sujeito a perigos, o homem teve a
liberdade de deslocar esses equilíbrios que tendem, no entanto, sempre, a
reconstituir-se e aos quais a Lei tende sempre a reconduzi-lo. Sem atingirmos o
caso limite da absorção completa, através da dor e da ascese, das 50 unidades
negras, isto é, a felicidade absoluta em Deus ou, no caso contrário, o da
absorção completa, através do abuso e da descida, das 50 unidades brancas; sem
atingirmos, assim, a plenitude da vida voluntária e conscientemente conquistada
ou, pelo contrário, a autodispersão no nada, atualmente na Terra encontramos
deslocações parciais de equilíbrios que se fixam, embora transitoriamente, no
campo de forças do próprio destino, e assim se transmitem, de vida em vida, à
espera de correção. Formam-se, desse modo, os mais diferentes destinos, por nós
mesmos construídos, com variados transtornos, no bem ou no mal, e que são o
resultado último de todas as operações da vida, resultado que é levado, intacto,
ao alto da página, ao iniciar-se um novo balanço, através de uma nova
existência.
Assim, ao nascer, cada um traz consigo o seu fardo, bem seu, porque feito por
ele mesmo, e que será peso ou auxílio, conforme ele quis. O ponto final de uma
vida é ponto de partida da que se lhe segue e as conclusões de uma se tornam
premissas da outra. As convicções que possuímos, ao finalizar de uma existência,
formam o instinto que nos impulsionará até os dias juvenis da existência
seguinte, sem que tenhamos consciência disso. Assim, inconscientemente, mas de
acordo com a justiça, estabelecemos cada nova vida sobre os fundamentos da
existência anterior, colocados em plena consciência de maturidade. E seremos,
assim, sempre o resultado de nós mesmos. Teremos, por isso, destinos felizes ou
infelizes, de alegria ou de dor. Quem abusou, desrespeitando a Lei por excessos
do prazer, pode achar-se, no futuro, com um destino de 25 probabilidades de
alegria contra 75 de sofrimento e assim sucessivamente. Construímos nosso
destino livre e vagarosamente, trazendo-o ao nosso lado com toda a nossa
história nele escrita, à base de nossos créditos ou débitos. Ao mesmo tempo que,
contínua e fatalmente o suportamos, podemos continuamente modificá-lo, como o
desejarmos, no sentido do bem ou do mal, preparando o futuro.
Eis como se pode analisar o imponderável e penetrar seu conteúdo
desconhecido. Tudo isso é tão verdadeiro para o indivíduo como para as
coletividades.
O fenômeno, na realidade, não se nos apresenta tão reduzido, em sua mais
simples expressão, facilitando observações. Na verdade, as forças componentes de
um destino não têm só duas cores, mas muitas e diferentes. Não se trata apenas
de alegria ou dor, embora esse seja o aspecto fundamental, mas, também, de
variadíssimas qualidades adquiridas, das mais variadas especializações e
disposições, conforme as atividades desenvolvidas e os trabalhos a cumprir.
É um fato que os destinos, excetuando-se os tristes destinos das nulidades,
se nos apresentam com direção própria, típicos, individuados por uma cor
dominante, por uma tendência para determinado gênero de experiências. Por outras
palavras, suas forças constitutivas são diferentemente coordenadas, formando um
organismo com vontade própria, seguindo uma determinada direção. A realidade
exterior, em que quase todos se baseiam, não é senão uma vestimenta, um cenário
transitório, que só serve para corporificar o desenvolvimento dessas forças. É
natural que quem tomar essa forma concreta por toda a realidade, há de
reconhecer, mais tarde, achar-se em face de uma ilusão.
Para podermos fazer, portanto, a análise do imponderável, necessitaríamos
saber penetrar a estrutura de nosso próprio destino, isto é, conhecer a fórmula
de sua composição e a natureza e percentagem de suas várias forças componentes.
Precisaríamos de conhecer, noutras palavras, o que preparamos em nosso longo
passado. O homem atual não tem conhecimento de nada disso e está longe de
imaginar que tudo isso se possa saber. E é bom que não o saiba, tão grande é sua
tendência de fazer mau uso de tudo. A divina sabedoria não nos permite o
conhecimento senão proporcionalmente ao que merecemos. Precisaríamos de poder
pesar méritos e deméritos, medir e qualificar as forças adquiridas, os impulsos
negativos e contrários das culpas, as falhas, os desvios, tanto quanto os
esforços de ascensão, as retificações, registrar todo o débito e crédito diante
dos equilíbrios da divina justiça. Necessitaríamos conhecer o homem em geral e
seu caso particular. Trabalho de profunda penetração no próprio destino, que
cada um pode fazer sozinho, estudando-se, reconstruindo-se, reconhecendo, pelo
que é hoje, o que necessariamente deve ter sido no passado, observando
analiticamente o que seus instintos, atualmente, resumem numa síntese,
percorrendo de novo a estrada seguida até chegar a ser o que hoje é, decompondo
o produto atual em seus vários elementos constitutivos. Determinado tudo isso,
poderá ele dizer, então, que probabilidade terá hoje de vencer ou perder, de
regozijar-se ou sofrer, de ser, como se diz, feliz ou desgraçado. Assim como
para saber qual será nossa saúde durante a vida, devemos conhecer o estado
orgânico de nossos pais e avós, assim, paralelamente à hereditariedade
fisiológica, devemos, para conhecer nosso destino, interrogar o nosso passado
espiritual, a fim de estabelecer o que dele nos provém, pela paralela lei de
hereditariedade espiritual.
É fundamental, para prevermos o êxito desta vida, conhecer seus precedentes,
sua contabilidade no tempo, saber com que fardo de débito ou crédito nascemos.
Não se trata absolutamente de sorte, nem de acaso, nem de habilidade apenas.
Compreender, compreender, compreender - eis o grande problema. O homem atual,
porém, se ocupa de outras coisas. E, por isso, a Lei o guia e o domina, sem que
ele compreenda coisa alguma.
Que imensa bagagem de impulsos trazemos conosco, como indivíduos e como
coletividade! E isso em todos os campos: moral, econômico, intelectual,
orgânico, social. Cada abuso, em qualquer parte, gera uma inversa carência,
correspondente e proporcional. Por isso na Terra muitos sofrem, necessitando de
coisas que, no entanto, existem em abundância.
Cada desenvolvimento unilateral de uma qualidade gera a necessidade de
completar-se com outro desenvolvimento no lado oposto, com experiências
diametralmente contrárias. Por isso, neste mundo muitos se encontram deslocados,
justamente porque aqui se encontram para experimentar e aprender o que ainda não
sabem. Daí parecer, na Terra, estar tudo errado. Este mundo, porém, não é lugar
de repouso, mas de exercício, não é campo para colher, e sim para semear.
Nossas deficiências morais, o crime, o vício, a pobreza, a imbecilidade, como
também as predisposições e vulnerabilidades orgânicas, são carências resultantes
de abusos. O panorama do nosso mundo parece poder resumir-se em duas palavras:
abuso e carência. Existe de tudo, porém, mal distribuído. O abuso, saciando-nos,
consome-nos, enfraquece-nos, facilitando ataques patogênicos de toda espécie, em
todos os campos, e contra os quais não mais estamos premunidos, por havermos
destruído nossas defesas naturais. O mau uso inverte os impulsos da vida que,
assim, não mais permanecem conosco, mas, se põem contra nós. Qual é nosso
passado humano?
A história nos diz que, muitas vezes, foi horrendo. Que poderemos esperar da
vida, com semelhante fardo nos ombros? Além disso, o dinamismo íntimo da própria
personalidade atrai as forças do ambiente, torna-se núcleo, formando-se-lhe em
torno vestimenta material de formas, em que detemos nossa observação, e que dão
solidez e resistência concreta ao imponderável. Se isso nos parece hostil e a
Terra um lugar de sofrimento, também é verdade que este mundo pode ser um
purgatório, lugar de redenção.
Se na Terra os involuídos podem até gozar e os malvados se arruinam,
entranhando-se sempre mais no mal, também é verdade que os evoluídos aqui vêm
para purificar-se ainda mais, através da dor e do amor. Também é verdade que no
purgatório terreno é oferecida a cada alma a possibilidade de reconstruir-se no
bem e de preparar para si mesma um futuro de felicidade, corrigindo seu próprio
destino através de uma vida santa.